Cotas para afro-descendentes: o recuperado que se quer esquecer

01/10/2005 0 Por Rodrigo Cintra
Há aproximadamente 500 anos forjamos uma sociedade no Brasil, isso ao menos em termos modernos. O Estado brasileiro é um fenômeno mais recente, ainda que também esteja em constate formação. Isso é importante de ser observado pois nos lembra que o que temos hoje é fruto do esforço de ontem e, sobretudo, teremos amanhã o que construirmos hoje.

Tendo em vista isso, voltemo-nos agora para o centro deste artigo: a questão das cotas para afro-descendentes.

Infelizmente o acesso às universidades brasileiras não é tão amplo como gostaríamos. Apenas uma pequena parcela da população consegue ingressar num curso universitário, e menos ainda acabá-lo. Preocupados com isso, vários brasileiros identificaram na cor da pela a pedra-angular do problema e nela querem atuar. Não resta dúvida de que todos nós devemos nos envergonhar pela tardia abolição brasileira, mas isso deve ocorrer apenas de forma difusa no corpo social. Isso significa que devemos nos predispor a corrigir uma situação, mas sempre de forma difusa para não criarmos condições sociais concretas igualmente distorcivas. Nunca nos esqueçamos que 20% de vagas reservadas para afro-descendentes também significam 20% a menos de vagas para brasileiros não-afro-descendentes (e que certamente ajudaram a construir este país tal qual todos os demais).

Estranho pedir uma justiça cega às diferenças ou um voto secreto ao mesmo tempo em que se pede condições especiais perante a sociedade e o Estado. Os movimentos negros devem ser estimulados e aplaudidos na medida em que permitem o maior desenvolvimento da sociedade civil, a organização e encaminhamento de demandas. Todavia, deve ser mais bem observados quando busca criar uma cisão social. Criar uma sub-identidade própria é louvável, separar-se do todo é perigoso (EUA e Europa já nos deram exemplos disso). Devemos recuperar ascendência no intuito de buscar contribuições específicas para o caldo brasileiro.

Tendo isso me mente, surgem algumas sugestões para os defensores das cotas e para os parlamentares e reitores que estão tratando desta questão no momento:

Se a cota é para afro-descendentes e é uma forma de resgatarmos toda sua contribuição à sociedade brasileira (reconhecimento), façamos o trabalho completo: resgatemos as culturas afro-descendentes. Para isso, não basta apenas ao candidato dizer-se afro-descendente, ele terá que recuperar (imagino que apenas revelar o que já sabe, afinal já têm a identidade) sua cultura. Deve ser feita uma prova com conhecimentos sobre a região africana de onde se vem, coisas simples e importantes como geografia, história e atualidades. A estes candidatos, também deve ser facultada a possibilidade de fazer, como prova de língua estrangeira, uma prova do principal dialeto ou língua falada na região de seus ancestrais.

O objetivo destas ações é estimular uma aceitação ampla do candidato e de sua cultura na sociedade brasileira, então não paremos nas formalidades estatísticas!

Universidade não é lugar para se fazer justiça social. É o lugar onde são formados importantes quadros, imprescindíveis a um país que quer ser digno de sua população. Subordinar essa condição a sonhos quixotescos é errar duas vezes: uma enganando afro-descendentes, prometendo uma inclusão social que não tem como ser garantida pela universidade; outra estimulando a formação de identidades em prol de grupos e não da sociedade.

Quantos foram os reitores que buscaram cortes no orçamento a fim de possibilitar a ampliação das vagas (que sejam específicas para afro-descentendes)? Quantos parlamentares pediram e efetivamente lutaram para a melhora da qualidade do ensino público, aumentando as chances de ingresso desses alunos nos cursos universitários? Quantos líderes de movimentos de raça pediram por bolsas destinadas a afro-descendentes, permitindo a eles a busca por qualificação?

Aproveito também para deixar mais uma sugestão: se realmente se crê que critérios diferenciadores em bases étnicas ou de raça são adequados ou mesmo suficientes para recuperar uma herança maldita que temos, não nos esqueçamos dos paraguaios. Se hoje seu país enfrenta grandes problemas de desenvolvimento e bem-estar, em grande medida isso se deve ao assassinato da maior parte de sua população masculina durante a Guerra do Paraguai…

Enquanto insistirmos em olhar as conseqüências e não as causas, continuaremos a viver na mediocridade social em que hoje estamos.

 

Moral da história: Buscar no passado justificativas para o presente é esconder-se sob um tempo que não existiu.

Cotidiano: Para aqueles que defendem a verdadeira democracia no Brasil, tudo o que prega a separação e a diferenciação é um crime.

Conselho Literário: Estando a filha com dor de parir, saiu a preguiça em busca da parteira. Sete anos depois ainda se achava em viagem, quando deu uma topada. Gritou muito zangada:

– Está no que deu o diabo das pressas…

Afinal, quando chegou em casa com a parteira, encontrou os netos da filha brincando no terreiro. (Contos e Fábulas Populares da Bahia – Basílio de Magalhães)


Originalmente publicado em:

Revista Autor (www.revistaautor.com.br)

Política

Ano V – nº 43 / Janeiro de 2005