O peso da diplomacia brasileira

01/10/2005 0 Por Rodrigo Cintra
Até onde se pôde perceber, a evolução das estratégias e do posicionamento diplomático brasileiro em questões comerciais é significativamente determinado pelo modus operandi do Ministério das Relações Exteriores (MRE) com relação às questões internacionais. Assim o sendo, partiremos momentaneamente1 desta premissa a fim de identificarmos as principais características da forma de ação dos diplomatas brasileiros bem como de algumas de suas causas.

O estudo das relações internacionais em âmbito acadêmico é recente no Brasil, ganhando em monta apenas a partir da década de 1990. Até então e à exceção da Universidade de Brasília e do Instituto de Relações Internacionais (IRI), seu estudo estava fragmentado em poucos especialistas – cada um tendo por origem áreas diversas das ciências humanas, sobretudo história, direito, economia e ciência política.

Por outro lado, podemos perceber uma importante presença dos tópicos de relações internacionais no âmbito governamental. Tais tópicos foram trabalhados tanto pela estrutura burocrática destinada ao tratamento destas questões – Ministério das Relações Exteriores – quanto pelo Poder Executivo (onde podemos destacar como um de seus mais significativos exemplos a posição pendular de Getúlio Vargas com relação à Alemanha e aos Estados Unidos).

Esse desencontro entre produção acadêmico-analítica e a importância das questões internacionais para o quadro estatal brasileiro é indicação da presença de um conjunto de fatores que deixam forte herança na forma pela qual a política externa brasileira é formulada.

Um primeiro ponto que deve ser levantado é a idéia de que cabe ao Ministério das Relações Exteriores brasileiro a tarefa de interpretar as questões mundiais e estabelecer como o Brasil deverá se inserir no sistema internacional. Esta forma de perceber a realidade surge latu sensu com a ascensão do Barão do Rio Branco ao MRE, em 1902. Foi neste momento que, segundo Ricupero (1005, 51-53), o Barão defendeu os interesses nacionais por meio da ”concentração metódica sistemática, de todos os recursos diplomáticos e de uso legítimo, não violento, do poder, sem chegar ao conflito militar, para a solução com êxito do conjunto dês problemas fronteiriços”.

Coube também ao Barão do Rio Branco estabelecer uma “moderação construtiva” das relações internacionais, ou seja, uma leitura grotiana da realidade (Lafer 2003 b), de forma que o direito e a diplomacia surgem como instrumentos para tratar do conflito e da cooperação. A esta tradição mistura-se uma leitura realista na avaliação dos condicionantes do poder da vida internacional, ainda que isso não justifique impulsos maquiavélicos; porém à busca de novas soluções diplomático-jurídicas no encaminhamento dos temas relacionados à inserção internacional do Brasil.

Desde a Conferência de Haia (1907) e da Conferência de Paz de Paris (1919) o Brasil tem desenvolvido a idéia de que existem interesses gerais no funcionamento e na determinação do sistema internacional e de que eles são importantes para o busca dos interesses específicos brasileiros. Desta forma estabelece-se estabilidade no jogo mudança-continuidade da política externa brasileira que se soma ao privilegiamento dos fóruns multilaterais internacionais para o tratamento das tensões internacionais brasileiros.

O resultado disto foi uma forte e sustentável herança diplomática voltada para análises mais amplas da realidade internacional conjugadas com a afirmação da ordem internacional legitimamente dada através das instituições internacionais de caráter multilateral. Desta forma, o estilo diplomático brasileiro consegue “desdramatizar a agenda da política externa, ou seja, de reduzir conflitos, crises e dificuldades ao leito diplomático, evitando que sejam explorados ou magnificados por interesses conjunturais” (Fonseca Jr. 1998, 356).

Neste sentido, a questão da continuidade é um fator fundamental no processo de formulação da política externa brasileira. Uma vez que o seu processo de formulação está fechado no MRE, torna-se mais fácil a manutenção dos grandes parâmetros norteadores do posicionamento brasileiro no mundo.

Segundo Santiago Dantas, as mudanças de política externa devem ser ponderadas, pois têm um impacto muito maior do que as mudanças em política doméstica já que podem afetar a credibilidade do país. Neste mesmo sentido, Lafer (2003 a, 112) defende que “as chancelarias trabalham com antecedentes. A relevância dos antecedentes reside no fato de que estes permitem que se estabeleçam analogias entre determinadas situações, além de assegurarem a coerência e a continuidade da política externa, que é um importante dado se sua credibilidade”. Ainda no mesmo estudo, destaca a importância da preservação de algumas características profundas da forma brasileira de tratar das questões internacionais: “preservar a agenda de desenvolvimento e as negociações econômico-comerciais para salvaguardar os interesses nacionais sem vê-los comprometidos pela nova agenda de segurança internacional. A segunda foi manter da melhor maneira possível a circunstância do nosso fazer diplomático” (Lafer 2003, 123).

Neste estudo buscaremos identificar alguns destes fatores bem como de suas bases de sustentação e permanência a fim de que possamos melhor compreender a dinâmica de formulação da política externa – tanto em sua dimensão técnico-burocrática, quanto em relação aos grandes valores e concepções de mundo dos tomadores de decisão.

As macro-influências na percepção internacional brasileira

Segundo Lafer (2003 b), “o desafio da política externa é, para cada país, o de traduzir as suas necessidades internas em possibilidades externas. Estas necessidades internas variam de país para país e as possibilidades externas também variam dependendo do contexto internacional e também da inserção regional de um país. Por isso que se pode dizer que a política externa de um país é na verdade o resultado da sua perspectiva de como o mundo funciona”.

Essa colocação do ex-chanceler brasileiro indica para um perfil duplo da linha diplomática brasileira. Por um lado pode-se perceber uma significativa presença da Escola Francesa das relações internacionais e, em menor medida, da inglesa; por outro lado, percebe-se também um forte pragmatismo ao estilo estadunidense.

A Escola Francesa pode ser percebida quando analisamos o enfoque metodológico utilizado pelos diplomatas (bem como por significativa parcela dos analistas acadêmicos). Isso ocorre pois o objeto de análise é constantemente marcado por percepções estruturais das relações internacionais associadas às relações sociais. Deste perfil analítico surgem as bases para a sustentabilidade de um discurso com perfil mais universalista.

Outro ponto que nos permite identificar uma forte influência da Escola Francesa é a tendência a multidisciplinariedade das análises, estabelecendo uma articulação da complexidade dos fatores suficiente para permitir que a forma que o Brasil concebe o mundo possa ser discutida como um todo coerente.

No entanto, se é possível verificar uma forte influência da Escola Francesa nas grandes linhas interpretativas brasileiras, esta forma de se ver o mundo não responde integralmente à ação brasileira. A constante preocupação em manter o alto grau de profissionalização do aparato burocrático de política externa, somada às reformas recentes do MRE a fim de adequar-se às novas realidades mundiais demonstra a preocupação brasileira com o cotidiano da política externa2.

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1 Ao longo do desenvolvimento deste projeto, a premissa de que coube ao MRE a responsabilidade central no desenvolvimento das ações brasileiras será colocado em questão. Optamos não fazê-lo ainda nesta fase pois são necessárias entrevistas com os atores envolvidos que ainda não dispomos.

2 Um dos principais exemplos neste sentido é a mudança operada durante o governo Fernando Henrique quando se optou por iniciar uma inserção pela afirmação ao invés da distância. Ainda que as macro-bases analíticas do sistema internacional tenham sido preservadas, buscou-se adequar a forma pela qual dá-se a inserção internacional brasileira às novas características sistêmicas internacionais.


Originalmente publicado em:
Revista Autor (www.revistaautor.com.br)

Especial CNPq

Ano IV – nº 41 / Novembro de 2004