A aplicabilidade dos jogos de dois níveis

01/10/2005 0 Por Rodrigo Cintra
O estudo das negociações internacionais vem ganhando destaque dentro do campo de estudo das relações internacionais. O aumento quantitativo e qualitativo das relações cooperativas entre os Estados tem demandado o aprimoramento dos mecanismos de interação, ao mesmo tempo em que coloca novos desafios para os negociadores a fim de conseguirem estruturar uma estratégia negociadora com maior capacidade de sucesso.

Dentre as diversas teorias que surgiram nas duas últimas duas décadas, destaca-se aquela desenvolvida inicialmente por Robert Putnam, que é chamada de Teoria dos Jogos de Dois Níveis. Seu esforço inicial destina-se a identificar o padrão comportamental dos negociadores internacionais, buscando mapear as principais pressões que atuam sobre ele e que, de alguma forma, podem interferir em seu processo de tomada de decisões.

Neste sentido, o negociador internacional deve canalizar um conjunto de pressões domésticas e compatibilizá-las com o espaço de manobra no cenário internacional. Para melhor compreender-se o papel desempenhado por esse negociador, costuma-se compará-lo com um porteiro, a quem cabe decidir o que pode entrar e o que pode sair.

Tal linha teórica é importante na medida em que recupera a idéia, ainda muito presente nos estudos de relações internacionais, em face da força da ortodoxia na área, de que não é possível fazer uma separação total entre o nível doméstico e o internacional. Há um continuidade entre estes dois níveis, que não só apresentam uma mútua interferência, como também, e sobretudo, são construídos conjuntamente.

A despeito deste importante ponto levantado, a perspectiva teórica dos Jogos de Dois Níveis ainda enfrenta algumas dificuldades operacionais quando seu esquema analítico é aplicado à realidade, na medida em que não é possível reduzir o tomador de decisão (o "porteiro") a uma só pessoa ou mesmo instituição.

Duas seriam as principais razões que gerariam esta incapacidade:

(1) a quantidade de informações necessárias para casos mais complexos (como aqueles em que ocorrem em cenários conflitivos – ao contrário dos cenários cooperativos) é de tal ordem que impede a real articulação pelos negociadores de todos os interesses envolvidos; e

(2) nem todas as informações estão disponíveis visto que nem todos os atores envolvidos numa negociação deste tipo agem no mesmo cenário, ou seja, nem todos os setores e grupos de pressão usam as mesmas formas de ação. Assim, enquanto uns atuam diretamente no MRE (USTR, Congresso…), outros atuam de forma mais dispersa ou indireta e em canais não tão conhecidos (como é o caso dos financiamentos para partidos políticos e das organizações de base de estruturação eleitoral – pressão indireta).

Desta forma, o negociador-porteiro não tem um real mapeamento das forças que enfrenta no nível doméstico, ao mesmo tempo em que, estendendo esta lógica, não consegue mapear os interesses domésticos das contrapartes.

Outro ponto me chama a atenção quando se pensa na aplicação dos Jogos de Dois Níveis é que esta teoria foi desenvolvida para ações cooperativas em acordos internacionais e apresenta sérias limitações para se pensar em casos de confronto internacional, mesmo que em áreas não-bélicas, como é o caso das negociações comerciais internacionais.

Desta forma, duas questões centrais surgem: (1) enquanto naquele caso se pensa numa relação que tende à exposição pública e que mobiliza mais facilmente os players, no segundo as tomadas de posição são realizadas de forma mais fechada, bem como as negociações que se seguem também são mais fechadas e, portanto, mais facilmente podem ser negociadas por meio de barganhas cruzadas claras para ambas as partes.

A outra questão que surge (2) é que numa negociação internacional cooperativa o espaçamento das possibilidades de negociação de cada uma das partes envolvidas é mais estreito. As partes querem o acordo, desta forma não exageram nas posições e mais facilmente tendem a ceder em prol da continuidade das negociações. Já no caso dos confrontos internacionais, nem sempre as partes estão interessadas em conseguir algum acordo, em geral as ações foram tomadas levando-se em conta fatores decisivos domésticos e que não podem ser submetidos aos fatores internacionais. Desta forma, quando se inicia qualquer tentativa de solução do problema em questão, as partes entram com uma margem de manobra muito menor e estão menos dispostas a negociar. Isso não ocorre simplesmente porque a margem de manobra de soluções aceitáveis mudou, mas sim por conta da própria natureza da relação.

O tomador de decisões, pelos motivos apresentados acima, nem sempre apresenta a capacidade de absorver e compreender todas as informações que lhe são disponibilizadas, de forma que ele só é capaz de ver uma parte da rede de ações na qual está imerso. Movimentações na rede ou nas informações que são disponibilizadas ao tomador de decisões podem alterar sua percepção da própria rede, de forma que ele passa a encarar novos pontos ao mesmo tempo em que deixa de perceber outros até então disponíveis.

Por extensão, tem-se que nem sempre ele tem a capacidade de saber de onde vieram algumas informações ou forças que influenciam em sua tomada de decisões, visto que pode ter sua origem em pontos da rede que não eram conhecidos naquele dado momento.

Isso poderia ajudar a explicar um pouco do aparente irracionalismo que existe em algumas tomadas de decisão. Os cientistas, já distantes dos acontecimentos, podem ter acesso a um conjunto maior de informações, além de dispor de um tempo mais adequado para o mapeamento da questão; assim sendo, tendem a ter uma visão melhor da rede que aquela que tinha o negociador.

Como conseqüência metodológica desta reflexão, tem-se que o estudo de uma negociação conflitiva não pode ser feito apenas levando-se em conta as informações brutas que o pesquisador dispõe. É fundamental mapear o conjunto de informações que o negociador tinha naquele momento para se compreender a tomada de decisões.


Originalmente publicado em:

Revista Autor (www.revistaautor.com.br)

Especial CNPq

Ano IV – nº 39 / Setembro de 2004