Mudança na estratégia do escudo antimísseis é continuidade e não rompimento

23/09/2009 0 Por Rodrigo Cintra
O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, declarou que cancelará o projeto do escudo antimísseis na Europa. Mais do que uma decisão de estratégia militar, ou mesmo um rompimento do governo Bush, isso consolida uma tendência mais profunda na posição que os Estados Unidos buscam desempenhar no mundo. De polo de poder, os Estados Unidos estão se tornando estabilizadores do sistema.
Muito mais do que um rompimento com as políticas de seu antecessor, George W. Bush, essa mudança nos rumos da ação confirma a alteração dos eixos da política externa norte-americana desenvolvida desde a Guerra Fria. O projeto Guerra nas Estrelas, lançado pelo presidente Reagan em 1983, lançou as bases para a concepção de uma atuação internacional focada na defesa continental dos Estados Unidos. Ao longo dos anos, as condições internacionais foram se alterando e o poder relativo dos Estados Unidos diminuindo, o que tem forçado um contínuo aumento na divisão do poder com outros atores internacionais.
A ideia básica inicial era alcançar a “blindagem” do território norte-americano, de forma que os Estados Unidos disporiam da capacidade de ataque – inclusive atômico – enquanto não sofreriam os riscos de um ataque por parte de qualquer outra potência. Neste sentido, o grande objetivo era alcançar um poder inquestionável, que confirmasse definitivamente a centralidade dos Estados Unidos no mundo.
Em George W. Bush o foco é alterado um pouco para se adequar às novas lógicas. O escudo passa a ser geograficamente determinado, buscando a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Mísseis na Polônia e radares na República Checa não representam apenas escolhas técnicas, mas, sobretudo, escolhas políticas. Esses países foram zona de influência russa durante muito tempo e significam a contínua expansão da zona de influência da Otan, além de serem capazes de oferecer uma barreira de proteção à Europa, tanto em relação ao Irã, quanto à Rússia e à China.
Neste sentido, Bush modificou a lógica defendida em Reagan na medida em que abandonou a ideia de combate a um inimigo (Rússia) e passa a operar com a lógica de defesa de aliados (Europa da Otan). Com isso, os Estados Unidos passam a dividir parte das responsabilidades pela busca da estabilidade mundial com outros países. Ainda que não seja possível dizer que os Estados Unidos se dispuseram em Bush a abrir mão de sua centralidade no sistema internacional, ficou claro que não mais poderiam determinar o jogo internacional sozinhos.
Obama, por sua vez, altera o modelo para se adequar à nova realidade. No entanto, também não é possível dizer que isso significa um rompimento com a política de Bush. Obama não abandonou a lógica militar e continua consciente da necessidade de defesa do território norte-americano e de seus principais parceiros. Bush construiu importantes bases no Alasca e na Califórnia, e estas serão mantidas. Obama não abandonou a ideia de uma barreira de proteção contra possíveis ataques iranianos, apenas adequou sua atuação às tecnologias existentes (mísseis de curto alcance) sem que isso implicasse em desconforto para outras potências, como é o caso da Rússia.
É importante observar que Obama também mantém uma política bastante ativa contra o fortalecimento de seus inimigos. O Secretário de Defesa, Robert Gates, declarou recentemente que Coreia do Norte e Irã já foram longe demais no desenvolvimento de armas atômicas, indicando que os Estados Unidos estão cada vez mais incomodados e, assim, preparados para intervenções.
Com isso, Obama deixa claro a seus tradicionais parceiros europeus, bem como a outros países da região que não estão totalmente alinhados com os Estados Unidos, que a prioridade agora é evitar o ataque a eles. Parte da crítica doméstica a Obama vai justamente neste sentido, argumentando que o Irã poderá desenvolver mísseis de longo alcance, o que deixaria o território norte-americano sob ameaça. Entretanto a idéia é garantir a defesa não apenas em termos militares, mas também em termos de criação de uma rede de interdependência e estabilidade que levem à proteção dos Estados Unidos.
Não se trata de uma discussão entre um Bush focado no poder bélico ou um Obama focado na diplomacia como forma de sustentar a liderança mundial dos Estados Unidos. Mais do que isso, Obama aprimora e torna adequado um modelo de liderança desenvolvido há mais de 25 anos.
*Rodrigo Cintra* é atualmente chefe do Departamento de Relações Internacionais da ESPM. É pós-doutorando em Competitividade Territorial e Indústrias Criativas (ISCTE, Lisboa), doutor em Relações Internacionais (UNB, Brasília), mestre em Ciência Política (USP, São Paulo) e bacharel em Relações Internacionais (PUC-SP, São Paulo) e diretor da Focus R.I.
Publicado originalmente em: Jornal do Brasil – Primeiro Caderno, 23 de setembro de 2009.
http://jbonline.terra.com.br/pextra/2009/09/22/e22097435.asp