A ALCA e a realidade brasileira
26/10/2005As elites econômicas e políticas brasileiras parecem ter acordado para a Área de Livre Comércio das Américas – ALCA. Nas últimas semanas alguns importantes encontros ocorreram para discutir qual deverá (ou deveria!) ser o posicionamento brasileiro. Uma idéia parece prevalecer entre aqueles que estão do lado de cá da diplomacia, ou seja, o empresariado: seguindo como está, o Brasil sairá extremamente prejudicado com o acordo.
O governo, por outro lado, oferece uma desculpa-explicativa por não assumir um posicionamento mais condizente com os interesses nacionais brasileiros. Se não fosse tão pífia em seu conteúdo poderia até mesmo convencer: “se, ao final das negociações, não estivermos satisfeitos com os resultados, simplesmente não assinamos”. Aqueles que acompanham as relações internacionais com maior proximidade sabem que uma negociação deste porte não resulta apenas num grande acordo final, durante todo o processo de negociação as partes assumem compromisso e é justamente isso que permite a construção do acordo final.
É importante entendermos que a ALCA não é um assunto apenas comercial ou, se muito, econômico (no sentido amplo do termo). Nele escondem-se importantes pilares da sociedade brasileira como nossa qualidade industrial, nosso poder comercial, nossa vontade de participar do mundo e de que forma. Em outras palavras, a discussão sobre a ALCA esconde em sua discussão sobre nosso projeto nacional.
A partir do momento em que nossas discussões sobre a ALCA são dispersas e fragmentárias, e o governo “esquece” de consultar os diversos grupos que formam a sociedade, a conclusão a que podemos chegar é a de que não temos projeto nacional. Ainda que devamos tomar cuidado com o jogo de palavras, em alguma medida podemos chegar à tal conclusão. Se entendemos projeto nacional da mesma forma que entenderam Getúlio, JK e Geisel, certamente veremos que nem o encavalemanto de dois mandatos foi suficiente para que o presidente Fernando Henrique Cardoso desenhasse o seu. Mas nem tudo é culpa sua.
A complexa estrutura político-institucional consome grande parte de nossas energias produtivas. Poderes entrincheirados no labirinto burocrático e sustentados por uma estrutura social viciada no fluxo de bens e informações fazem com que qualquer mudança institucional seja inviabilizada se implicar em ameaça aos poderes já solidificados. A reforma tributária, que tanto ecoou na boca de políticos candidatos, agora ecoa no fundo de gavetas no Congresso Nacional. A reforma política, outra bandeira que acenava para o novo mundo agora só encontra espaço em fóruns acadêmicos.
Diante deste quadro, fragmentado em partes que tendem à auto-exclusão, as ações do Poder Executivo (em todos os níveis) também acaba fragmentada. Em recente entrevista ao Estado (21/outubro/2001, p.B4), o ex-Ministro das Comunicações, Luis Carlos Mendonça de Barros, perguntado se haveria tempo suficiente para definição de uma política industrial consistente, responder que “como o presidente é uma pessoa realista, sabe que não há tempo de fazer grande coisa nessa área”. O que mais se destaca aqui é justamente o que está nas entrelinhas: estamos nos aproximando do final de oito anos de governo e nada pôde ser feito nesta área.
Mudar este cenário não é fácil nem mesmo deverá ocorrer nos próximos anos (ainda que o prazo final de negociações da ALCA seja 2005). No entanto, isto não no exime de tentar. As discussões devem ser amplamente abertas, ainda que seja necessário tomarmos cuidado com os seus parâmetros. Talvez o mais importante neste momento seja justamente romper com “verdades” que são apresentadas como dogmas sagrados.
A lista é grande mas apresento algumas:
1- “Os EUA são muito fortes e portanto temos que ceder pois jamais conseguiremos impor nossos pontos-de-vista”. Não se trata de impor mas sim de negociar. Eles são fortes mas nós, em nosso sub-continente, também. A ALCA, para alcançar seus objetivos precisa de nossa participação ativa, então joguemos com nosso poder relativo;
2- “A ALCA ativará o comércio nas Américas”. Certamente sim, a questão é saber para qual lado e, em que medida ela afetará a desigualdade social brasileira e continental, que logo será uma das maiores fontes de conflito que teremos;
3- “Quanto a ALCA entrar em vigor, teremos acesso ao sonhado mercado estadunidense”. Hoje, a taxa média de importação nos Estados Unidos é de 3,5% enquanto a brasileira roda em torno dos 14%, ou seja, o que prejudica nossas exportações não são as barreiras tarifárias porém as fito-sanitárias e a política de cotas. Aqui é importante lembrar que o livre comerciar está ligado à possibilidade das partes livremente contratar e não simplesmente à ausência de tarifas.
Outras questões como a força de marcas (caso da Embraer e da Petrobrás); a disposição dos governos em permitir a destruição de setores produtivos ineficientes, mas tradicionais; e a infra-estrutura de exportação, que inclui de portos e sistemas viários modernos à acesso a recursos também ganham sua importância neste debate. Seu descuido pode implicar numa inserção debilitada.
As dificuldades continuam e a hora chegou. Agora depende de nossa disposição enquanto sociedade, e da qualidade de nosso governo.
Rodrigo Cintra
São Paulo, 24 de outubro de 2001.
É importante entendermos que a ALCA não é um assunto apenas comercial ou, se muito, econômico (no sentido amplo do termo). Nele escondem-se importantes pilares da sociedade brasileira como nossa qualidade industrial, nosso poder comercial, nossa vontade de participar do mundo e de que forma. Em outras palavras, a discussão sobre a ALCA esconde em sua discussão sobre nosso projeto nacional.
A partir do momento em que nossas discussões sobre a ALCA são dispersas e fragmentárias, e o governo “esquece” de consultar os diversos grupos que formam a sociedade, a conclusão a que podemos chegar é a de que não temos projeto nacional. Ainda que devamos tomar cuidado com o jogo de palavras, em alguma medida podemos chegar à tal conclusão. Se entendemos projeto nacional da mesma forma que entenderam Getúlio, JK e Geisel, certamente veremos que nem o encavalemanto de dois mandatos foi suficiente para que o presidente Fernando Henrique Cardoso desenhasse o seu. Mas nem tudo é culpa sua.
A complexa estrutura político-institucional consome grande parte de nossas energias produtivas. Poderes entrincheirados no labirinto burocrático e sustentados por uma estrutura social viciada no fluxo de bens e informações fazem com que qualquer mudança institucional seja inviabilizada se implicar em ameaça aos poderes já solidificados. A reforma tributária, que tanto ecoou na boca de políticos candidatos, agora ecoa no fundo de gavetas no Congresso Nacional. A reforma política, outra bandeira que acenava para o novo mundo agora só encontra espaço em fóruns acadêmicos.
Diante deste quadro, fragmentado em partes que tendem à auto-exclusão, as ações do Poder Executivo (em todos os níveis) também acaba fragmentada. Em recente entrevista ao Estado (21/outubro/2001, p.B4), o ex-Ministro das Comunicações, Luis Carlos Mendonça de Barros, perguntado se haveria tempo suficiente para definição de uma política industrial consistente, responder que “como o presidente é uma pessoa realista, sabe que não há tempo de fazer grande coisa nessa área”. O que mais se destaca aqui é justamente o que está nas entrelinhas: estamos nos aproximando do final de oito anos de governo e nada pôde ser feito nesta área.
Mudar este cenário não é fácil nem mesmo deverá ocorrer nos próximos anos (ainda que o prazo final de negociações da ALCA seja 2005). No entanto, isto não no exime de tentar. As discussões devem ser amplamente abertas, ainda que seja necessário tomarmos cuidado com os seus parâmetros. Talvez o mais importante neste momento seja justamente romper com “verdades” que são apresentadas como dogmas sagrados.
A lista é grande mas apresento algumas:
1- “Os EUA são muito fortes e portanto temos que ceder pois jamais conseguiremos impor nossos pontos-de-vista”. Não se trata de impor mas sim de negociar. Eles são fortes mas nós, em nosso sub-continente, também. A ALCA, para alcançar seus objetivos precisa de nossa participação ativa, então joguemos com nosso poder relativo;
2- “A ALCA ativará o comércio nas Américas”. Certamente sim, a questão é saber para qual lado e, em que medida ela afetará a desigualdade social brasileira e continental, que logo será uma das maiores fontes de conflito que teremos;
3- “Quanto a ALCA entrar em vigor, teremos acesso ao sonhado mercado estadunidense”. Hoje, a taxa média de importação nos Estados Unidos é de 3,5% enquanto a brasileira roda em torno dos 14%, ou seja, o que prejudica nossas exportações não são as barreiras tarifárias porém as fito-sanitárias e a política de cotas. Aqui é importante lembrar que o livre comerciar está ligado à possibilidade das partes livremente contratar e não simplesmente à ausência de tarifas.
Outras questões como a força de marcas (caso da Embraer e da Petrobrás); a disposição dos governos em permitir a destruição de setores produtivos ineficientes, mas tradicionais; e a infra-estrutura de exportação, que inclui de portos e sistemas viários modernos à acesso a recursos também ganham sua importância neste debate. Seu descuido pode implicar numa inserção debilitada.
As dificuldades continuam e a hora chegou. Agora depende de nossa disposição enquanto sociedade, e da qualidade de nosso governo.
Rodrigo Cintra
São Paulo, 24 de outubro de 2001.