Por um novo olhar sobre a democracia

30/09/2005 0 Por Rodrigo Cintra
Grécia Antiga. Eis o momento no qual o discurso e a prática democráticas ganham contornos nas mentes dos cidadãos. Não poucas vezes apontou-se para a distinção entre cidadãos e escravos que rasgava a sociedade grega. Muito tempo passou desde então e hoje escravos e democracia são duas coisas incompatíveis. Isso ocorreu em função da universalização do demos, ao menos no discurso.

A recente onda de defesa dos direitos humanos e da cidadania, além das importantes questões que traz em si, deveria obrigar-nos a repensar o sentido da democracia. Quando defendemos o direito à livre expressão ou o direito à vida ou quando defendemos o direito a ter direitos (como ensinava-nos Hannah Arendt) é porque o cidadão não existe como tal. Isso significa que o demos não passa de um aglomerado de pessoas presas a um território.

Poderíamos dizer que o contrato social acabou? Quando eu e tu delegamos nosso poder ao Leviatã que não é mais imparcial o contrato acabou ou mudou de natureza? A estrutura social sob a guarda dos valores democráticos deveria ser capaz de equilibrar de uma forma dinâmica e ininterrupta as diferenças de poder de indivíduos e de grupos. Quando isto não ocorre e o contrato social está, no mínimo, em crise, devemos romper com a democracia forma ou buscar sua manutenção mesmo que isso signifique a possibilidade de injustiças políticas ad eternum? Quer caminho devemos seguir?

Para respondermos a estas inquietantes dúvidas, devemos recuar um pouco e recuperarmos conceitos que, se hoje são tidos como puros exercícios filosóficos, foram fundamentais para a gestação disto que hoje teimamos em chamar de sociedade. Num primeiro momento sem nos preocuparmos com enquadramentos teóricos, pensemos um pouco na liberdade.

Para o escravo era deixar esta condição passando a ser o controlador de suas ações; para p transeunte é a possibilidade de percorrer os caminhos que desejar; para o artista é poder fazer as obras que desejar, criticando o que quiser desde que respeitado o convívio social. Assim, vemos que a liberdade não é algo dado por si mesma, sua única característica fixa é ser um verbo, cujos contornos só serão dados no relacionamento entre "eu" e o "todo" (que pode significar instituições políticas, sociais, jurídicas ou econômicas bem como grupo de pessoas ou indivíduo).

O que essa discussão sobre a liberdade tem a ver com a qualidade da democracia de hoje? Quando compreendemos a democracia como escolha de governantes, algo cada vez mais comum, tudo o que precisamos é o voto universal. Quando isso acontece, promovemos um governo aristocrático pouco variável que se apresente como expressão da vontade do demos. Na verdade, os governantes têm legitimidade (foram eleitos de forma legítima), no entanto seu governo não tem legitimidade pois não funda-se na vontade do demos.

Esta confusão entre governantes e governados já vem desde os tempos monárquicos, quando o governante tinha a legitimidade de sua autoridade e atos em Deus, ou seja, num ente externo à unidade política em questão. Neste estado, a condição máxima que tinham as pessoas, com exceção do rei, era a de súditos. Assim, a liberdade era definida tendo-se em vista esta condição. Entretanto, no momento em que o rei perde sua legitimidade exterior e passa a depender de uma legitimidade que se encontra dento da unidade política, as coisas mudam.

Num primeiro momento a legitimidade vinha de poucos e, com o passar do tempo, foi-se ampliando até atingir a quase universalidade das pessoas de uma determinada unidade política. Mais do que inaugurar novas formas de escolha dos governantes e de governar, tal mudança causou uma alteração fundamental na condição do súdito. Este deixou de assim ser caracterizado, ganhando o status de cidadão. Assim, sua liberdade passou a ser definida com base nesta nova condição.

O cidadão, membro do demo e limitado pelo Estado, tem as características de seu liberdade alteradas de forma a seguir os limites do demo, instrumentalizados pelo aparato estatal. A fim de tornar esta instrumentalização viável, decidiu-se pela escolha de alguns que devem transformar vozes e vontades difusas em políticas amplas e universalistas. Certo que, por vezes, estes tradutores (conhecidos por governantes) devem ignorar algumas destas vozes e vontades a fim de preservar o aparato estatal, que será usado pelas gerações futuras (para isso temos a diferença entre Câmara dos Deputados e Senado Federal).

A partir do momento em que nossa voz resume-se ao poder de votar, e mais, este passa a ser o nosso principal direito/obrigação dentro do sistema democrático, deixamos de ter nossa liberdade definida em relação ao demos para tê-la em relação a um sistema. O perigo desta troca de condições é que, aceita a democracia como sistema político, perdemos o direito a ter direito e passamos a só ter atendidas aquelas demandas "permitidas" pelo sistema1.

Se isso transforma a natureza do cidadão, também o faz com o governante. Não por menos, cada vez mais a população aponta como bons governantes o bom administrador. Não mais importa a capacidade de transforma vozes e vontades em políticas, o objetivo único está na boa gestão do aparato estatal com uma obsessão louca por equilíbrios contábeis. Assim, o sucesso do governante passa a ser mensurado em termos monetários e não mais sociais ou mesmo políticos.

Quando isso ocorre, novamente a legitimidade do governar é retirada da unidade política, voltando a ser algo externo e abstrato (antes Deus, agora o equilíbrio da máquina). Se a legitimidade sai do demos (a não ser para a escolha dos governantes), então podemos dizer que este perde até mesmo a possibilidade do direito a ter direitos ser aplicada universalmente, resumindo-se a uma nova condição, mais de acordo com a nova estrutura de organização político-social, a de consumidor.

Outras explicações, percorrendo caminhos mais fáceis que este que estamos a percorrer, já chegaram à mesma conclusão (que os cidadãos foram substituídos por consumidores). Qual é a vantagem de percorrermos este caminho então? Talvez o motivo mais importante é o de que ele nos dá uma maior clareza do quadro atual. A simples constatação desta mudança para consumidor não no ajuda a compreender o mapa e a forma como chegamos aqui, transformando-se numa visão fatalista que transforma uma contestação em realidade fixa quando, na verdade, é dinâmica.

Uma primeira conclusão a que podemos chegar é que a democracia não está em crise, ela continua a ser uma boa forma de escolha dos governantes. As medidas tomadas para estes também não são erradas pois encontram a legitimidade necessária para serem aplicadas. O que está em crise é a resposta sistêmica da estrutura social.

Nossas estruturas sociais são hierarquicamente organizadas a fim de melhor canalizar as diferenças sociais. O incrível aumento da densidade social nos últimos séculos sobrecarregou estas estruturas a ponto de transformar diferenças em desigualdades. Como estas vêem do coração da sociedade, são rapidamente aceitas e naturalizadas. É no funcionamento sistêmico que este problema deveria ser solucionado ou, ao menos, minimizado. Como o fator de legitimidade do governar está fora da unidade política, a busca por equilíbrio não contempla esse vício estrutural.

Estas desigualdades, sem conseguirem o devido tratamento, continuam a aumentar já que a densidade social é cada vez maior. Desta forma, mesmo que a democracia seja substituída por sistemas políticos autoritários, o problema persistirá já que a simples mudança de sistema político não implicará, necessariamente, na recuperação da centralidade no demos. Ao contrário, os sistemas autoritários modernos são dirigidos à busca por maior eficiência no trato do aparato estatal.

A democracia que temos, problemática e incompleta, certamente não é suficiente para reverter o atual estado de nossa sociedade. No entanto, já foi capaz de resolver um dos problemas que teríamos que enfrentar, a saber, um método bom a amplo de escolha de governantes. O grande problema com o qual devemos trabalhar agora é o da fonte de legitimidade do governar. Abandonar todo o sistema democrático porquê uma de suas partes não responde da forma que gostaríamos é um erro maior do que deixar as coisas como estão.

Para recuperarmos a centralidade do demos na legitimação do governar, precisamos fortalecer não só a organização sa sociedade civil, mas sobretudo a articulação entre as partes, visando a possibilidade de elas se expressarem como um todo, ao mesmo tempo em que consigam preservar suas especificidades. Quando nos ocupamos somente da organização, esquecendo-nos da articulação (coisa muito comum), aprofundamos ainda mais os vícios sistêmicos apontados acima, um vez que estes grupos passam a lutar dentro do aparato estatal para conseguir o máximo possível. Neste jogo de soma-zero, o avanço de um, necessariamente significa o recuo do outro.

É importante não confundirmos a necessidade de promover a organização da sociedade civil com assistencialismo. Devemos recusar o padrão adotado pelo Estado-paternalista desde a Era Vargas uma vez que este promove uma organização dependente do Estado e sem articulação entre as partes. Associações de bairro e comerciais, bem como clubes ganham um especial destaque neste processo ao conseguirem um primeiro ordenamento local. Devem canalizar as demandas locais, articulando-as com as diretrizes de desenvolvimento da cidade e fim de capacitarem-se como demandantes de políticas públicas e não de benesses do Estado.

Parte deste trabalho de articulação pode ser desenvolvido por associações da sociedade civil (ONGs) especialmente pensadas e estruturadas para isso, Mais do que controladoras da pauta de discussões e ações, a essas associações cabe o papel de catalisadora e potencializadora da pauta. Ainda assim, é fundamental que estas sejam transparentes e abertas a fim de evitarmos possíveis vícios de funcionamento.

A participação do Estado deve ser instrumental, oferecendo condições físicas ao funcionamento destes processos de articulação. Geralmente isto é traduzido na disponibilização de espaços para os encontros, também pode significar transporte, cessão de técnicos, pequenas verbas para material e alimentação, entre outros. Ainda que isso seja de difícil acesso, quanto mais organizados e articulados forem os grupos, maiores serão as possibilidade de conseguirem.

Os industriais podem aproveitar a tradicional organização de seus funcionários para, a partir dela, promover projetos que visem a formação ampla deste funcionário. Em outros termos, é preciso que o empresário conceba seus funcionários primeiro como cidadãos e depois como funcionários. Essa mudança de mentalidade também serve aos objetivos produtivos, permitindo uma maior integração com a empresa, aumentando a tendência à fidelidade.

Poderíamos continuar nossa lista, identificando algumas características fundamentais de cada grupo social e pensando como elas serviriam a nossos propósitos. No entanto, cada um deve encontrar seus próprios caminhos sobretudo porque, por mais sinalizada que esteja a estrada, só a percorrerão aqueles que realmente desejam.

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1 Devemos pensar no novo papel da criança/adolescente baseado nestes processo que levaram à profundas alterações na estrutura social brasileira. É através de uma análise cuidadosa de suas características e velocidades de implementação que teremos uma melhor compreensão da necessidade de criar leis que possam proteger os indivíduos, neste caso as crianças e os adolescentes.

2 Para maiores esclarecimentos sobre o significado de cada uma destas penas, ver o artigo 112 e seguintes do ECA.


Originalmente publicado em:

Revista Autor

Ensaio – Julho de 2001