A era das inversões

29/09/2005 0 Por Rodrigo Cintra
Introdução

As desigualdades entre as pessoas, as nações e as oportunidades são cada vez mais gritantes. O sistema industrial – base da era Moderna – enfrenta uma de suas maiores crises; o desemprego alcança níveis poucas vezes observados na era industrial, e mesmo nos lugares em que se mantém estável ou em declínio, a deterioração da qualidade do emprego é marcante (são os conhecidos Mac job’s, uma alusão aos empregos oferecidos pela cadeia McDonald’s).

O tempo parece correr velozmente de forma que o novo milênio se aproxima tão rapidamente que não temos tempo para preparar a sua chegada, só o esperamos. Correções de curso resumem-se à maquilagem – mais do que correções, mero disfarce.

As gerações futuras poderão envergonhar-se de nós. "Por qual motivo nossos avós deixaram as coisas chegarem a este estado? Será que eles não percebiam o que estava ocorrendo?", poderão se perguntar. Pode até ser que estejamos vivos quando fizerem essas perguntas, porém há muito as nossas paixões estarão mortas.

Caso eles tenham olhos melhores do que os nossos, e sensibilidade melhor do que as nossas, verão, por trás de todo esse fabuloso e, até ousamos dizer, sensacional desenvolvimento tecnológico, um grande retrocesso.

Usarão potentes calculadoras que funcionam ao comando de voz para somar a quantidade de vidas que foi destruída nas Revoluções Americana e Francesa (entre tantas outras que não tiveram a mesma sorte de serem contempladas com a medalha de "fato histórico"). Vidas estas, usadas para justificar e alimentar um novo projeto de mundo.

Por ironia ou brincadeira, essas revoluções, que tanto trouxeram ao homem, demonstraram-se, na verdade, uma grande Caixa de Pandora, mas algo modificada. Em seu interior carregou, não o poder da esperança, mas sim o poder da inversão.

Mais vidas continuaram a ser sacrificadas para que os homens passassem a ser vistos em sua singularidade coletiva. Os homens eram entendidos como iguais, porém insubstituíveis. A fim de assegurar, entre outras coisas, a proteção e promoção do indivíduo, o Estado se viu fortalecido. Vieram gerações (concomitantes, segundo alguns) de direitos "humanos", com enfoques múltiplos, abarcando o político, o social, o econômico e o cultural.
Grupos que ignoram fronteiras políticas surgiram para ajudar na efetivação de tais direitos, da mesma forma surgiram grupos que ignoram classes, que ignoram cor, ignoram religiões, sexo. Tais grupos, assim como indivíduos ou mesmo a sociedade enquanto um todo, conseguem, dentro do possível, identificar contra quem lutam, com quem lutam e com quem não têm qualquer relacionamento direto.

Essa é a efetivação dos direitos humanos que ora vivenciamos. Sem dúvida, é uma ação muito positiva e digna de todos os esforços que dispomos. Ainda assim, tememos que as gerações futuras a olhem com um certo desdém, como uma medida paliativa. Talvez neste ponto nós devêssemos nos censurar, não o faríamos, assim como não censuraríamos as próximas gerações. Essa é uma medida paliativa.

Quando procuramos o agente da ação, e não a causa da mesma, não é o cerne da questão que está sendo trabalhado, são suas conseqüências. Reiteramos que suas conseqüências devem receber atenção e o adequado tratamento, porém não podemos ter 100% das forças direcionadas para o tratamento dessas conseqüências, afinal, nem só de analgésico se cura um doente!
Um pouco dessa força deve ser direcionada para essa causa central. Devemos nos perguntar: por que o Estado ficou tão forte? Por que a tecnologia é tão importante? Por que a arena política é tão importante?

Tenderíamos responder a essas perguntas com uma simples frase: pois o homem é importante. Porém não podemos, a não ser que queiramos recorrer numa auto-hipocrisia ou numa ignorância total daquilo que nos cerca e preenche.

Voltando às gerações futuras, é justamente neste ponto que podemos nos sentir envergonhado por estar vivendo agora. Estamos vivendo em um momento em que tudo se inverte, todos os meios se tornaram fins e o fim se tornou o lugar. Entretanto isto não está claro, azendo/permitindo que toda a nossa organização social (que podemos entender como um eterno processo em constante mutação) se fundamente em absurdos.

Como podemos encarar de frente, com os olhos erguidos, aqueles que não nasceram pois tiveram seus ascendentes mortos para alimentar as fogueiras das revoluções por um mundo melhor?
Mesmo que indiretamente, estamos lutando pela sedimentação desse mundo invertido, que ignora aqueles que lutaram pela mudança, que ignora os nossos avanços permitindo o retrocesso. Deverão nossos netos usar uma agenda já preenchida de 1820, obedecendo-a?! Provavelmente sim, pois o mundo que a eles deixaremos deve se aproximar daquele (ou seria desse?).
Países inteiros estão sendo reformados, direitos estão sendo destruídos, vidas estão sendo ignoradas; tudo isso para que dívidas externas possam ser pagas. A função da redistribuição de riquezas do Estado também foi invertida, ela tira o dinheiro de todos, inclusive daqueles que praticamente não tem, para remeter tudo a bancos e instituições que já possuem incontáveis montantes de capital.

A expansão e aprofundamento do capitalismo, que deveria promover uma melhora na condição de vida das pessoas também parecem estar invertidos, afinal, não podemos confundir o número de televisões por habitante com uma melhora geral da qualidade de vida. Isso para não falarmos da complicada situação de grande parte da África e dos pequenos pedaços do continente africano que parecem estar pulverizados em cada cidade do mundo, sob viadutos, em morros e nas ruas a circundarem nossos belos carros com pintura perolizada.

A saúde deixou de ser algo responsável pelo bem-estar da pessoa para ser uma questão de qualidade de mão-de-obra. Vê-se em pequenas notas de jornais o desmantelamento dos sistemas de saúde. Hospitais públicos que ainda permanecem abertos, resumem-se a grandes ambulatórios destinados a manter – em alguma medida – pessoas vivas. O mesmo com a educação e com a cultura, sendo que as escolas públicas perdem qualquer sentido educacional, concentrando-se meramente na formação das pessoas rumo a um mercado de trabalho incerto, tanto qualitativa quanto quantitativamente.

Tudo está sendo invertido.
Aquilo que estava muito cuidadosa e lentamente sendo cunhado por cidadão, está sendo agora mutilado. Uma parte desta mutilação que, de uma forma sarcástica, pode ser denominada de consumidores, são aqueles que foram mantidos dentro do sistema, são os que têm direitos garantidos não para poder se manter um cidadão, mas sim para se manter um consumidor.
E outra parte do que foi chamado cidadão agora nenhuma denominação específica (nem isso!) recebe. São os que estão fora do sistema; são os que nada têm a perder pois nunca tiveram a oportunidade de lutar por algo. Quando muito lhes é dada a possibilidade de lutar pela vida.
Tanto estes, quanto os consumidores, estão sendo despojados de sua qualidade de humanos. E esse processo de despojamento é realizado pelo Estado, pela sociedade e por cada um de nós. E só poderemos mudar tal situação se trabalharmos a causa que, reiterando, é a inversão de fins, meios e lugares. Caso contrário, como poderemos defender e sustentar de forma razoável que o homem é um fim em si mesmo?

Se todos aqueles meios que serviam ao desenvolvimento do ser humano hoje são entendidos enquanto fins, e o que é pior, sem um questionamento crítico desta realidade que se coloca opacamente a nossa frente, como compatibilizar com a idéia do homem enquanto um fim?
Essa é um escolha que fatalmente incorre na exclusão das demais alternativas. Acho que não cabe a mim a decisão de qual deve prevalecer, ainda que eu acredite no homem enquanto um fim em si mesmo. Ainda assim, caso a escolha não seja claramente colocada, correremos o risco de estarmos promovendo a escolha que não desejamos.

A sociedade Moderna
Sobrevivemos num mundo de imagens coloridas que preenchem as ruas da cidade e as televisões. A sujeira da rua mistura-se com o glamour das vitrines. Mendigos caminham par e passo com executivos, ambos pedintes.

É este o mundo que sonhamos mudar. Mas este não é o mundo real, é somente uma de suas facetas, talvez a mais colorida. A vida nas megalópoles a tudo engole, até mesmo a crítica. O mundo todo é desconfigurado e veste a imagem da grande cidade, reino vivo dos paradoxos insolúveis.

Até mesmo a arte para de se apresentar como uma crítica, apresenta-se agora como a crítica. A beleza e a feiura foram substituídas pelo chocar, mas chocar a quem? Talvez as células da grande cidade.

O tempo é contado em preciosos segundos. O espaço do além passa a ser o quintal, o menos importante mesmo que constituinte. Tudo o que não sabemos torna-se o quintal. E, ao que tudo indica, estamos agora nos tornando o quintal de nós mesmos.
As pessoas passam a agir como vetores descontrolados, procurando ir em sua direção ilógica, ignorando que a soma dos vetores fica, desta forma, minimizada. Diante deste quadro, as uniões (sejam de classe, sejam de interesses) tornam-se cada vez mais fluidas e, por vezes, difusas. Ainda assim, gritos de socorro procuram romper as lógicas de uma sociedade em estado de choque que prefere admirar as luzes de neon.

Uma saída
Um dos principais “gritos” é o dos direitos humanos. Tal grito é importante não por ser superior a qualquer outro, mas por colocar em evidência uma série de questões que dizem respeito à qualidade de vida de uma grande parcela da população mundial.

No decorrer da maior parte da formação da “sociedade” ocidental de base judaico-cristã, um dos principais focos de organização social foi a formulação de deveres. Nos séculos XIX e, principalmente, no XX tal foco mudou para a idéia dos direitos. As recentes declarações dos direitos dos homens compreendem tanto os direitos individuais tradicionais (todos ligados às liberdades) quanto os direitos sociais (ligados a poderes).

Essa mudança coloca um problema: como fazer leis para uma sociedade, baseando-se nela, quando ela é sobremaneira injusta?

Podemos promover uma regulação oficializada do status quo, transformando essa injustiça em algo ao menos legal. No entanto, se entendermos o direito não como algo fechado em si mesmo, não como um conjunto de normas sedimentadas e ordenadas, e sim como um projeto de mudança social, a resposta a essa pergunta mudaria de natureza.

A separação dos poderes, apregoada por Montesquieu, permitiu um enorme avanço para a promoção de uma sociedade mais justa. Ainda assim, faz-se necessário não confundir a separação dos poderes com a total inarticulação entre eles. Os três poderes fundam-se não só no ser da sociedade, como também no dever ser.

Neste sentido, se entendermos a política enquanto a ciência do governo dos povos, não podemos deixar nossas reflexões teóricas do funcionamento da sociedade ignorarem o papel ativo tanto do governar quanto do direito. Direito e política não podem ser separados.

É certo afirmar que o direito não é um agente de mudança social. Somente o homem o é. No entanto, o direito é um elemento importante na promoção de mudanças. Isso pode ser notado com o artigo 5º da Constituição Federal Brasileira: a despeito de todos os incisos que ali asseguram uma determinada sociedade, vivemos em outra, muito diferente. Ou peguemos o artigo 6º que declara a segurança como um direito social, ao passo que 100 mil pessoas morrem de forma violenta anualmente no Brasil. Devemos lembrar que a ineficácia do direto perpassa todo o ordenamento jurídico, caracterizando, mais do que um problema jurídico, um problema político.

Podemos perceber um papel positivo da Constituição mesmo nas normas que não foram devidamente regulamentadas, já que a sua existência impede a criação de normas contrárias, sob a pena de serem inconstitucionais.

Tanto o mandato de injunção (art. 5º, inciso LXXI), quanto o de inconstitucionalidade procuram assegurar a observância das normas constitucionais diante da omissão do poder legislador. Com isso percebemos que há normas ativas, que dependem dos agentes de mudança a fim de promover os efeitos reais, ou seja, o problema da ineficácia está na vontade político-social e não propriamente em problemas inerentes às normas.

Com isso em mente, podemos analisar a organização jurídico-social brasileira sob um novo prisma. Hoje há uma tendência à apontar os direitos econômicos como mais importantes para serem resguardados, mesmo porque os demais direitos dele adviriam.

Acreditamos que os direitos à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade e à infância (art. 6º) são mais custosos do que o direito à propriedade (art. 5º). O problema é que costumamos identificar esse primeiro grupo de direitos com uma postura ativa do Estado, enquanto que nesse último, identificamos uma quase-ausência do Estado; seria algo muito próximo com a “mão invisível” smithiana quem regularia isso.

Se é verdade o que acabamos de apresentar, então por que concordamos em continuar a pagar impostos que são direcionados à manutenção da polícia, do sistema carcerário, da custosa burocracia do ministério público, de parte do judiciário, entre tantos outros?
Não podemos negar que os direitos têm custos diferentes, não entanto supor que não têm custos é uma falácia. Ao levarmos em conta que os custos de se assegurar tais direitos é redistribuído através da população (através dos impostos e moralmente), podemos concluir que a sua efetivação dependerá da disposição da sociedade em fazê-los valer. Até que ponto a sociedade está disposta a pagar e, principalmente, quais direitos serão privilegiados?
A questão do privilégio de alguns direitos, mais do que mostrar, em alguma medida, o perfil ideológico da sociedade brasileira, mostra o absurdo no qual sustentam-se muitos. Privilegiar uma norma em detrimento de outra é descaracterizar toda a lógica jurídica (a não ser que escolhamos aquela que mais beneficia o indivíduo, o que não é o caso aqui).

Se não é imoral torturar alguém, (rompendo com a integridade física) a fim de conseguir fazer justiça, então também não será imoral ignorar direitos sociais em benefício de direitos econômicos. Sendo a lei, ao menos hipoteticamente, igual para todos, como é possível diferenciarmos hierarquicamente as leis?

Enquanto olhos hipócritas da sociedade são chocados com latrocínios em bairros de classe alta, são fechados para as crianças que morrem de fome na periferia. Tanto um quanto o outro gostariam de uma atitude mais positiva do Estado e, em alguma medida parecem conseguir, só que proporcional à sua “importância”.

À luz de tudo isso, devemos voltar à pergunta inicial, que permitiu toda essa nossa reflexão, não para respondê-la, contudo para colocá-la em termos mais reais: como evitar a efetivação seletiva das leis em uma sociedade, baseando-se nela, que promova a justiça?

Direitos Humanos e sociedade
A concretização desses direitos é longa e árdua e, a despeito de ter custado muitas vidas, hoje está sendo destruída em prol de alguns interesses muito específicos que nem sempre implicam na melhora do todo, como costuma-se apontar.

Nesse sentido, refletir sobre os direitos humanos é refletir sobre a própria sociedade, tanto estrutural quanto politicamente. É refletir sobre aquilo que Hannah Arendt aponta como sendo uma característica da Modernidade, a idéia de processo.

Este texto, mais do que procurar o desenvolvimento institucional e jurídico dos direitos humanos, procura refletir sobre as implicações destes direitos na vida da sociedade.
Sendo o direito uma criação humana, seu valor deve derivar do próprio homem. Ou seja, sendo o seu fundamento o próprio homem, devemos atentar à dignidade humana e não à especificações de grupos.

Os direitos humanos fundamentando-se no homem em si mesmo dispensa qualquer adjetivação ao mesmo para se fazer válido, ao contrário dos demais direitos, que pedem alguma singularidade ao se detentor.

Uma vez que a dignidade humana é um construto social e moral, temos que os direitos humanos – por mais universais que sejam – são fruto de uma determinada época e lugar. O que vale ressaltar é que, a despeito dos vários embates ideológicos entre grupos, tanto no interior das nações como entre elas, um direito mais básico que deve ser procurado é o de promover a inserção do indivíduo na arena política.

Em qualquer lugar, institucionalmente controlado por desde sistemas democráticos até sistemas totalitários, a persistência de algumas condições sociais, econômicas e políticas pode tornar supérflua a existência de alguns seres humanos, promovendo um refugo social.

A promoção desse refugo social atenta contra a tentativa de imposição de limites a abusos do todo contra a parte, tentativa essa que corroborou para a transição do Estado absolutista para o Estado de direito. As declarações americana e francesa chancelam a idéia de que é o governo que serve ao indivíduo e não o contrário.

A perda de referências e a ação política
Vivemos em um momento no qual as tradições estão sendo quebradas ou então guardadas em museus, implicando numa total perda de referências. As ações passam a ser pautadas pelo desconhecido que consegue amarrar as massas e suas idéias.

Dizem – eis um desses casos – que o Brasil tem jeito, e que para o seu sucesso, o Estado deve dar o exemplo: pegar políticos corruptos, prender alguns grandes violadores dos direitos humanos, serial killers…
Se exemplo fosse suficiente para mudar as coisas, poderíamos dizer que as bruxas que morreram em fogueiras da Inquisição serviram para outra coisa além do show social. Os exemplos podem ser esclarecedores, porém nunca direcionadores ou mesmo determinadores.

De que vale o Estado punir alguns daqueles que não corroboram com os padrões de convívio social preestabelecidos, se eles não servirão de esclarecimento? Se a idéia não é reconhecida, de nada vale o exemplo dessa idéia, já que ele se transformará na idéia em si mesma, ou seja, fechada nesta caso particular e transitório.

Outro ponto é que um exemplo de conduta serve para mostrar a alguém, alguma conduta desempenhada por outrém. Se pedimos e indicamos o exemplo de conduta que queremos ver, então já sabemos qual é a idéia por trás dele.

Então por que esperamos o exemplo para só depois começar a agir? Faz isso também parte do show social? Ou deveríamos chamar hipocrisia social?
Mesmo assim, alguns ignoram a realidade que preenche os exemplos, defendendo a necessidade de o Estado dar exemplos, "Isso é para os mais pobres que não têm muita educação". No entanto, burrice é confundir o burro com o ignorante.

De qualquer forma, defender que o exemplo é um começo para que depois a sociedade também o faça é um péssimo começo. O Estado não tem como função a vingança, seja de indivíduos e seus agrupamentos, seja das abstratas comunidade e sociedade. Selecionar casos é fazer vingança e não justiça. Por que um caso é escolhido e outro não? Quem decide qual caso será escolhido enquanto o exemplar?

Para melhorar o país não precisamos de exemplos, não precisamos de filantropia. Precisamos de gente capaz de arrancar a máscara da hipocrisia, por vezes já fundida nos rostos de nossos tempos. Precisamos de gente que faça as idéias, e não os exemplos.

É neste contexto que vemos nascer sociedades como a Alemanha nazista e suas variáveis; que vemos ditadores tornando-se tão fortes que nem os mísseis poderosos de uma guerra de imagens pode destruir. É neste contexto que vemos democracias que não se preocupam com o demos, e no entanto têm uma grande atenção dirigida ao óikos. O todo e as partes perdem a importância diante do colorido de algumas partes.

Democracia de valores?
A democracia schumpteriana pode estar saindo vitoriosa um muitos lugares, até mesmo no Brasil; entretanto, reduzir a democracia a procedimentos pode legitimar um governo autoritário, bastando que a cegueira social esteja instaurada.

Orgulhamo-nos de morar num país democrático, e defendemos a democracia. Votamos e pagamos impostos. Nos escondemos sob discursos vazios, a fim de esconder o que realmente acontece: nossas vidas são controladas de forma praticamente totalitária.
Elegemos representantes em todos os níveis, porém não elegemos estilos de vida, em qualquer nível. Por que sustentar canhões e tanques para suprimir a população se podemos usar a ameaça de uma vida miserável?

Foi construída no mundo suficiente riqueza e esplendor para todos sonharmos, e também suficiente miséria para temermos. Todos queremos chegar ao topo da montanha e ninguém quer o seu ar rarefeito. Desta forma roubam o ar dos demais. “E este é o mundo, dizem, se não concordar, será excluído”. Mas já estamos excluídos porque tudo o que podemos ser é o que podemos comprar.

As pessoas não amam mais, só têm relacionamentos – que exigem um caminho de mão-dupla. Ninguém quer ser amado, querem ser adorados.

A importância dos direitos humanos
Os direitos humanos, ao recolocarem o ser humano enquanto o centro de debate e da ação, chama-nos a atenção de que se poderia chamar a primazia dos números. Após um longo reinado da política, a economia parece assumir a coroa. Seus princípios e ideologia tornam-se a nova religião oficial, religião de dogmas inquestionáveis.

Governos de vários países do mundo, incluindo-se o Brasil, promovem reformas institucionais, voltando seus olhos unicamente para o novo deus. São os bons resultados econômicos que direcionam e qualificam as transformações. Na sociedade civil, qualquer questionamento sobre esse novo deus é rapidamente abafado pelo exército de beatas.
O Brasil encontra-se entre as dez maiores economias do mundo, contudo ocupa a 66ª posição no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). Ou seja, o problema não está propriamente no PIB per capita porém sim na distribuição da riqueza produzida.

O processo de transformação do cidadão em citadino completa-se em todos os níveis. Todavia, um homem digno não é aquele que tem uma casa, um banho ou uma mesa para comer (ainda que comer lixo). Um homem digno é aquele que se conheceu e se aceitou. Qualquer coisa que pode ser apresentada num testamento, até mesmo num testamento de vento, não mostra a dignidade de um homem.

Seus sonhos são dignos. Num sonho o cerne é fluido como o dançar das nuvens. Materializar o sonho é destruí-lo. Já com o amor não acontece o mesmo, a idéia do amor cada vez mais confunde-se com a posse. Seja a posse do desejado, seja a posse do desejador. O aço é tão forte que pode rachar. O chumbo tão mole que só amassa. Assim é o homem, chora para não cair de joelhos pedindo algo que nunca acreditou.

Ser livre não é poder abrir as páginas de um livro qualquer, é entendê-lo. Ser livre não é poder andar por aí, ser livre é poder sonhar.

A primazia dos números
Já é lugar comum entender a educação enquanto uma alavanca para o desenvolvimento econômico. No entanto, por mais redundante que isso possa parecer, sociedades inteiras costumam confundir um lugar comum com uma base eterna de estruturação social.
A escola privada é tida como o exemplo de produtividade a ser seguido, a referência máxima indicada pelo novo deus. Reformas das escolas públicas atentam para o objetivo de tornarem-se produtivas, ou serão fechadas. Numa sociedade altamente competitiva e excludente, o vestibular pode demonstrar a ineficácia da uma instituição, no entanto esta ineficácia liga-se especificamente à competição.

Não de forma isolada, os números novamente tomam nossas mentes enquanto uma representação perfeita da realidade. Cálculos percentuais nos mostram a ineficácia da escola pública, as provas estão nos vestibulares das melhores universidades (que, por sinal, geralmente são públicas).

O Brasil passa por um período de aparentes profundas transformações institucionais. Reforma após reforma marcam o cotidiano, dividindo o espaço midiático com as corrupções.
Como que rindo da opinião pública, os casos de corrupção são esquecidos ou ignorados. Legisladores acusados de corrupção saem da cadeia para legislar. Aqueles que fazem as leis são os primeiros a rompê-las e ainda são feitas manifestações a seu favor.
E o absurdo continua no caso das reformas. Mobiliza-se toda um sociedade em prol de transformações institucionais do Brasil; mas, assim como no caso anterior, não conseguimos mais saber quem é deus e quem é o diabo, quem é o bem e quem é o mal.

Ao invés de promover transformações que visam a melhora da sociedade brasileira, promovemos reformas direcionadas para a melhora de alguns números específicos da economia brasileira.
Peguemos as reformas das relações de trabalho. O resultado de um desenvolvimento de gerações no sentido de resguardar a qualidade de vida do trabalhador está sendo desmontado. Tudo em prol da redução do “custo Brasil”. E quem arcará com o custo social do Brasil? Certamente não serão os mesmos empresários que hoje estão ganhando com a diminuição do custo econômico do Brasil.

As reformas educacionais que estão sendo promovidas hoje no Brasil, a fim de ajudar com o crescimento econômico futuro, se transformará no ponto de estrangulamento deste mesmo crescimento.

Nas escolas públicas, parte significativa dos alunos do segundo grau não conseguem entender um simples e pequeno texto, e, por vezes, têm sérias dificuldades para escrever o próprio nome.

É certo que os trabalhadores de baixo escalão não precisam ser muito educados, no entanto, o desenvolvimento tecnológico ligado ao crescimento econômico exige um mínimo que não está sendo oferecido pela educação formal atual.

Já aqueles que estudam em escolas particulares e chegam à universidade, sabem ler um texto e até mesmo entendê-lo. Entretanto, a capacidade de criticar tais textos foi perdida, ou melhor, nunca foi construída.

Estes são aqueles que formarão a próxima geração de empresários que promovem o status quo não por acreditarem em sua superioridade, mas por não saberem o que está acontecendo.
No caso da saúde temos algo parecido. É direcionado um mínimo de verbas à saúde, suficiente para manter viva a massa de trabalhadores a fim de que “nossas” empresas não parem.
Já os abastados podem usufruir dos melhores hospitais para curar depressões e overdoses cujas causas mais profundas estão em suas vidas sem sentido, mesmo porque talvez a vida não precise ter sentido.

E as reformas continuam, passando pela previdência e pelo sistema político. Algumas profundas, outras urgentes, e todas conturbadas.

Estranho que, em tempos ditos globalizados, não atentem para a posição brasileira no globo. Estamos entre as 10 maiores economias do mundo e, no entanto, as reformas que ora vivenciamos não parecem corroborar com uma melhora na distribuição de renda deste país que está entre os 10 mais ricos do mundo. Ao contrário, tais reformas só servem para ajudar-nos a alcançar a posição de primeiro lugar na concentração de renda.

Já que as pessoas costumam gostar de números, deixemos duas questões para serem quantificadas:

Reformas, para quantos?
Reformas, a que custos?

As reformas propostas, em geral, são importantes e fundamentais. Contudo, elas precisam ser entendidas num contexto muito maior, e os sociólogos que têm importância e renome deveriam chamar a atenção para o paradoxo das conseqüências. O que precisamos no Brasil é algo muito mais profundo do que os números conseguem mostrar.

Se as reformas das instituições sociais são importantes, reformas sociais são muito mais. Se reformas das instituições e organizações econômicas são importantes, reformas dos objetivos econômicos são muito mais.

Não podemos nos esquecer que número algum consegue expressar a dignidade humana. Além de que ela é muito mais importante do que a dignidade do trabalhador, mesmo porque nem todos conseguem se tornar trabalhadores neste país.

Ao procurarmos números que demonstrem a face econômica, perdemos a capacidade de nos questionar sobre a eficácia da escola na formação de cidadãos.
Melhorar a qualidade do ensino de técnicas é promover a formação de um indivíduo que consegue cumprir mais eficazmente determinadas atividades, entretanto, não está diretamente ligado à promoção da inserção do indivíduo no mundo política.

O sistema educacional precisa de transformações, no entanto, sem uma reflexão maior sobre tais transformações, corremos o risco de os critérios de mercado (do espetáculo, do visível) substituírem os do cidadão.

Mercadorização do Estado
Perder a sociedade enquanto um todo e, em especial, os grupos e indivíduos que têm uma menor força política, é promover a mercadorização do Estado, transformando o cidadão em consumidor.
Levando ao extremo, se o que importa é o sucesso de alguns números econômicos (faz-se investimentos na educação e na saúde buscando o desenvolvimento econômico), então faria mais sentido identificar aquelas atividades que dão maior retorno econômico ao país e aplicar a maioria dos recursos nesta atividade, reservando uma pequena parte para o sistema coercitivo, que seria o responsável por garantir a propriedade privada e o abafamento de levantes populares.

Posições absurdas como estas são possíveis pois estão baseadas numa lógica na qual o mundo imaginário deixa de ser o campo da reflexão para ser o mundo do real. As coisas devem acontecer primeiro na mídia (especialmente a televisiva) para passarem a existir.
Juntando-se a isto, a não-formação de cidadãos faz com que o campo político se atrofie ainda mais. Ou seja, a democracia, que deveria ser o espaço para o debate multilateral, esvazia-se de conteúdo para ser legitimada somente na sua imagem.
Faz-se necessário marcar que defender os direitos humanos não é defender a gratuidade dos serviços públicos, é defender a promoção objetiva de algumas condições mínimas para que o indivíduo possa se tornar um cidadão.

Falar em direitos humanos é questionar o processo atual, segundo o qual os meios estão se tornando o lugar, levando à descaracterização dos fins, que passam a habitar esse novo lugar.
São Paulo, outubro de 1999

Bibliografia

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• MARSHALL, Berman. Tudo que é sólido desmancha no ar – A aventura da modernidade. São Paulo. Cia. das Letras. 1987.
• SANTOS, Boaventura. O Norte, o Sul e a Utopia. São Paulo. Editora Cortez. 1995.
• TEIXEIRA, Anísio. A Educação é um direito. São Paulo. Cia. Editora Nacional. 1968.


Originalmente publicado em:

Observatório da Justiça e da Cidadania