Cooperação internacionale o debate entre Realistas e Liberais

18/10/2005 0 Por Rodrigo Cintra
O objetivo deste ensaio é recuperar algumas idéias que surgem nos debates entre Realistas e Liberais, especialmente em torno do tema da cooperação. Busca-se expor algumas críticas bem como possíveis encaminhamentos das mesmas a partir de uma determinada corrente. Para tanto, mais do que tratar dos projetos de pesquisa, serão abordadas questões ligadas à filosofia da ciência (especialmente epistemológicas e ontológicas) e que podem ajudar no esclarecimento de algumas discussões.

Epistemologicamente, o desafio que a ótica do Estado como ator unitário e racional passa a enfrentar nas últimas décadas (globalização, aumento da interdependência econômica, novos temas na agenda internacional) assenta-se na percepção de que sociedades são unidades políticas e sociais integradas, cabendo aos governos implementarem tal união quando ela não existir. Desta forma, o Estado apresenta-se como o intermediário entre a dinâmica doméstica e o sistema internacional. Seguindo este raciocínio numa perspectiva ortodoxa, ao se ter a questão da segurança como central para a determinação das ações e estratégias adotadas pelo Estado no sistema internacional, esta ganha uma dinâmica voltada à necessidade de controle das “interferências” de questões internacionais em questões domésticas. Assim sendo, enquanto é possível explicar, ainda nesta perspectiva, o comportamento estatal num cenário de perda do controle absoluto sobre questões de ordem econômica (low politics), o mesmo não é visto em campos como o estatal-político (high politics). Isso ocorre uma vez que as premissas da autonomia do Estado em relação à sociedade e a coerência na execução da política externa são de ordem ontológica para as perspectivas Realistas.

Baseando-se uma vez mais nesta perspectiva, tem-se que a estrutura internacional apresentar-se-á constante com algumas variações possíveis no sistema internacional (unipolaridade, bipolaridade e multipolaridade). Análises como as desenvolvidas perto do fim da Guerra Fria, ao não apresentarem a “previsão” do colapso deste sistema internacional, teriam mostrado uma grande fraqueza da capacidade analítica oferecida pelas perspectivas Realistas. Neste sentido, uma das principais críticas levantadas a estas perspectivas está em sua suposta incapacidade de lidar com mudanças na estrutura do sistema internacional, bem como em gerir analiticamente a crescente complexidade da agenda internacional contemporânea (agora significativamente preenchida com questões que ultrapassem a lógica estatal, tal qual discutidas acima). Tal perspectiva parte de uma leitura que percebe a teoria Realista como totalizante, ou seja, capaz de explicar, a partir de suas premissas e hipóteses ontológicas, todos os fenômenos internacionais. Entretanto, deve-se notar que o realismo é uma teoria problem-solving. Neste sentido, ela aceita o mundo tal qual ele se apresenta, com seus conflitos e tensões políticas, como um dado panorama de ação. Neste sentido, o objetivo de uma teoria com este perfil é compreender o funcionamento das questões previamente identificadas. Desta forma, as questões a serem analisadas são separadas em blocos congêneres, que são analisados em si e a partir de si. Ao mesmo tempo em que tal perspectiva fortalece a capacidade analítica ao permitir uma maior precisão do objeto de estudo (uma vez que as demais questões que podem ter alguma influência marginal no objeto são ignoradas), ela apresenta problemas quando se pretende uma análise mais ampla e complexa, para a qual não foi desenvolvido o instrumental.

Os novos desafios que ora se colocam para os Estados e para o próprio sistema internacional (novos temas para a agenda internacional) têm seus padrões identificados de acordo com a leitura teórica que deles se faz. A problemática da cooperação surge como desdobramento desta discussão, além de permitir uma melhor compreensão do modus operandi da perspectiva Realista. Entre as principais distinções entre a imagem Realista e a Pluralista (sobretudo em sua versão liberal) está a perspectiva da cooperação. Enquanto para os primeiros a cooperação só ocorre em termos relativos (ao final do processo, a proporcionalidade da assimetria de poder deve ser preservada entre todas as partes que participaram da cooperação), para os segundos há cooperação sempre que ocorrer ganhos absolutos (desde que cada parte alcance ganhos que superem os custos necessários a cooperação, esta tenderá a ocorrer).

Quando uma análise desta problemática é estendida a todos os campos das relações internacionais, o argumento Realista enfrenta alguns problemas de sustentação empírica, ainda que resguarde a sustentabilidade lógica da argumentação (tanto numa visão realista clássica – tendo a natureza humana como sua base –, quando numa visão neo-realista – tendo o sistema internacional como condicionante do comportamento estatal). No entanto, tendo-se em vista a necessidade de colocar a argumentação Realista dentro de seu próprio quadro teórico, o argumento volta a ganhar em capacidade explicativa e, portanto, empírica.

As críticas liberais costumam concentrar-se na emergência de uma estrutura econômico-produtiva que ultrapassa o Estado e que faz com que este, por vezes, busque ganhos absolutos em seus processos cooperativos. Tal perspectiva, colocada como crítica ao Realismo, encontra-se falha na medida em que ignora a já citada premissa ontológica da autonomia do Estado em relação à sociedade, que se desdobra na noção de high e low politics. A perspectiva Realista não nega a importância de questões econômicas, contudo salienta que estas são subordinadas à lógica da segurança. Neste sentido, a contradição que existiria entre os ganhos absolutos e relativos não existe de fato, mas apenas quando são misturadas premissas ontológicas de diferentes perspectivas teóricas. O ganho absoluto em questões ligadas às low politics são explicáveis dentro da lógica Realista, sendo compreensível sua existência e até mesmo apoio por parte dos Estados; no entanto, isso somente pode ocorrer caso tais ganhos absolutos não signifiquem alterações no quadro de proporcionalidade das distribuições assimétricas de poder no sistema internacional, ou seja, alteração dos ganhos relativos em questões de high politics. Talvez um dos exemplos mais elucidativos neste sentido seja o rápido progresso ocorrido na integração econômica dos países europeus, acompanhado por uma lenta e problemática integração na área de segurança e política externa comum. Enquanto os Estados europeus apresentam uma certa facilidade para lidar com o aprofundamento da interdependência econômica, nas questões de bens sensíveis e de segurança coletiva o sistema ainda encontra sérias limitações, além de estar baseado, em última instância, nas forças armadas de cada Estado-membro.

Em certa medida, tal tendência de confluência acrítica de premissas ontológicas resulta da própria lógica de desenvolvimento da disciplina das relações internacionais, que faz com que as várias perspectivas teóricas, mais do que manter um diálogo entre si – no qual as partes em interação compreendem a perspectiva de sua contraparte –, apresentem-se como um movimento de reação aos posicionamentos das demais teorias. Destarte, ao invés de buscar um diálogo de sofisticação analítica a partir de um estudo mais amplo e complexo, busca-se mostrar as vantagens em se adotar uma perspectiva em relação a outra. O resultado desta dinâmica está na necessidade de recusa de todo o instrumental desenvolvido por uma perspectiva, em detrimento da outra. Desta forma, na maior parte das vezes, as críticas elaboradas por um grupo acabam por ser projeções de premissas próprias em hipóteses de outras perspectivas teóricas.

Assumindo os Realistas que o sistema internacional é anárquico e que sempre terá esta característica não implica dizer que não existem formas de buscar arranjos internacionais que diminuam a insegurança estatal[1]. Significa apenas que o fato de não haver um poder central capaz de determinar e fazer cumprir um conjunto de regras que garantam a cooperação entre os membros (de forma orgânica ou mecânica, para recuperar uma perspectiva durkheiminiana), faz com que os Estados não confiem plenamente em seus parceiros, porém isso não significa que a desordem passará a conformar todos os comportamentos e que a cooperação estará constantemente limitada. Some-se a isto, a existência de um governo supranacional não serviria apenas para a implementação destas regras, também seria destinada a evitar o uso da violência entre os membros. Destarte, se, por um lado, a inexistência de um governo supranacional limita os estímulos cooperativos, por outro, a inexistência de uma entidade capaz de limitar o uso da violência faz com que os Estados também busquem formas de diminuir a constante ameaça que paira sobre eles. É neste sentido que são desenvolvidos conceitos como segurança coletiva e solução pacífica de controvérsias.

Neste sentido, a percepção da perspectiva estatal no sistema internacional difere nas visões Realista e Liberal. Enquanto os liberais (sobretudo os liberais-institucionalistas) interpretam a ação estatal como atomística, ou seja, os Estados se preocupariam apenas com os ganhos absolutos, na medida em que procuram maximizar suas posições, independentemente dos demais; para os Realistas há uma perspectiva posicional, na qual há uma preocupação dos Estados tanto com seus ganhos quanto com os ganhos de outros Estados e que podem impactar em mudanças sistêmicas ou mesmo estruturais. Com isto, as cooperações inter-estatais apresentam estímulos e constrangimentos diferentes em cada uma das perspectivas, ligando-se mais facilmente a uma busca por ganhos absolutos no caso de ações atomísticas e à busca por ganhos relativos no caso das ações posicionais. Ainda neste sentido, para entender adequadamente cada uma das perspectivas, é necessário verificar se a ação cooperativa tem alguma ligação com esta discussão, visto que, quando não tiver, o uso do conceito de cooperação absoluta e relativa torna-se inaplicável.

Neste sentido, tem-se que a preocupação dos Estados com segurança será tanto maior quanto maior forem as transformações em Estados que se apresentam com um maior potencial conflitivo. Retomando um ponto levantado acima, o tema da cooperação deve ser analisado também sob este prisma. Ou seja, nem mesmo a cooperação de ganhos relativos é automática na perspectiva realista, já que pode estar diretamente ligada à ameaça que as partes apresentam entre si, e que aumenta a insegurança entre os Estados, não permitindo o estabelecimento das condições necessárias para o estabelecimento efetivo de um processo cooperativo.

Desta forma, deve-se notar que as interpretações teóricas oferecem instrumentos analíticos limitados quando se pensa numa perspectiva geral, porém que são capazes de explicar algumas tendências e ações dentro de um determinado limite. Importante, portanto, faz-se identificar os parâmetros ontológicos e epistemológicos de cada teoria a fim de melhor compreender a leitura que esta faz de uma dada realidade.

Nota:
[1]
Isso é particularmente explícito nas análises de Robert Keohane quando desenvolve a idéia da Teoria da Estabilidade Hegemônica e de Robert Cox quando discute as organizações internacionais como congelamentos temporais de relações de poder, tendo adesão tanto por parte dos países mais fortes quanto dos mais fracos.


Universidade de Brasília
Instituto de Relações Internacionais
Pós-Graduação em Relações Internacionais
Disciplina: Seminário Avançado em Teoria das Relações Internacionais (2º/2004)
Professor: Dr. Alcides Costa Vaz