O governo mudou, será que a sociedade também?
01/10/2005Passada a transição, entramos oficialmente no governo Lula. Mais do que uma mudança de Cardosos para Silvas, os desafios que estão postos ao governo e à sociedade brasileira ultrapassarão as simples danças de gabinetes ministeriais. O governo Lula enfrentará, em grande medida, as mesmas dificuldades enfrentadas por FHC em 1 de janeiro de 1995, quando assumiu o poder. Assim, para entendermos o começo deste novo governo, é interessante voltarmos e analisarmos aquele que agora deixa o Palácio do Planalto.
Gostemos ou não, o ex-presidente FHC apresentou qualidades invejáveis a qualquer governante, ao mesmo tempo em que apresentou fracassos. Voltemos a 1995.
No âmbito interno, o uso da URV (Unidade Referencial de Valor) usou o próprio veneno inflacionário para preparar o soro que acabaria com os quinze anos de inflação galopante que assolava a economia brasileira e, sobremaneira, grande parte da população que não tinha acesso aos produtos bancários. Isso trouxe novamente a esperança de retomar o crescimento econômico. Ao cenário econômico favorável, juntou-se um clima político propício à estabilidade. O PSDB a época apresentava-se com as mesmas qualidades hoje encarnadas no PT, ou seja, um partido formado por uma base estável, com lideranças importantes, honestas e altamente capazes para abordar de forma construtiva os principais problemas brasileiros.
Acreditava-se naquele momento que velhos males brasileiros deixavam o cotidiano para fazerem parte apenas da literatura e das aulas de história. A modernização da social-democracia acabaria definitivamente com os caudilhos nordestinos e com o neopopulismo do sudeste, estabelecendo relações políticas sólidas e pautadas nos grandes valores da legitimidade e da busca por justiça.
No entanto, passados oito anos e dois governos FHC/PSDB, pouco destas promessas concretizaram-se. Não resta dúvidas sobre os significativos avanços que verificamos na dimensão social: a mortalidade infantil caiu de 48 para 30 por mil nascidos enquanto a taxa de analfabetismo caiu para 13% em 2000, comparando-se aos 19% encontrados em 1991. A reforma agrária foi outro importante setor no qual o governo FHC trabalhou incessantemente. No âmbito internacional, através de uma diplomacia-presidencial ativa, FHC conseguiu projetar o país nos principais foros internacionais decisórios bem como entre algumas das nações centrais no sistema internacional contemporâneo, com destaque para a França.
Se o governo conseguiu avançar tanto nestas áreas, por que deixou a população brasileira tão decepcionada – decepção esta expressa nos resultados eleitorais últimos?
Um dos principais caminhos para entendermos esse fracasso relativo está na própria estrutura política brasileira. Muito tem-se falado em reforma política, sobretudo depois do fenômeno Enéas, mas pouco nos aprofundamos no real significado desta reforma. Como de costume, concentramos nossas atenções nas estruturas institucionais de nossos problemas, jogando para a legislação toda a resolução de nossas mazelas. Assim, a falta de base eleitoral moderna, baseada em relações de representação real transforma-se na necessidade de voto distrital misto; o domínio caudilhesco dos principais partidos brasileiros transforma-se nas listas fechadas; a falta de identidade ideológica e de compromisso com um projeto de governo transforma-se no mandato partidário.
Esses problemas, ao não serem abordados na dimensão correta, acabam por esconder a realidade do Estado brasileiro. Mesmo diante de um governo social-democrata de líderes esclarecidos e com, ainda que se diga o contrário, vontade política para mudar, o que vimos foi a repetição de práticas tradicionalistas disfarçadas com sofisticados argumentos vanguardistas. Alguns exemplos poderiam ter acordado a população brasileira antes, porém ela estava absorta em conseguir sobreviver no cotidiano. Entre eles podemos citar a presidência do Senado Federal cair nas mãos de um senador (depois cassado) acusado de práticas totalmente antidemocráticas ou a divisão do aparato estatal entre grupos sabidamente contrários ao desenvolvimento da democracia participativa.
No entanto, culpar o mandonismo político por todos os nossos problemas é repetir o mesmo erro que praticamos desde a chegada da Família Real ao Brasil. Em grande medida, o principal fator de preservação da estrutura arcaica sob a qual ergue-se toda a sociedade brasileira é a total e irrestrita falta de identidade entre as elites brasileiras e o Brasil. Fadada a morar num país subdesenvolvido (“em desenvolvimento” segundo alguns, mas um desenvolvimento que repete uma distribuição de renda vergonhosa não deve ser chamado de desenvolvimento), nossas elites esforçam-se por construir/copiar oásis de desenvolvimento e riqueza. Vejamos o Rio de Janeiro, que guarda alguns dos principais símbolos nacionais brasileiros – Cristo Redentor, Pão de Açúcar e Copacabana – ostentar uma réplica da Estátua da Liberdade no bairro emergente da Barra. Ou peguemos São Paulo com suas inúmeras towers e maisons recriando estilosos prédios estadunidenses.
Freqüentando restaurantes que custam mais do que se paga para uma empregada doméstica durante todo o mês ou usando filas bancárias para “clientes especiais” vamos nos acostumando a transformar a desigualdade em normalidade. Para que o Brasil deixe de ser este eterno gigante deitado em berço esplêndido, nossas elites precisarão acordar e deixar de ter vergonha de se assumir como brasileira. Gostemos ou não, aqui nascemos.
Mesmo sendo um sociólogo, o ex-presidente FHC não demonstrou a capacidade necessária para alterar esta estrutura social – talvez nem fosse capaz de modificar algo que foi tolhido com muito esmero durante cinco séculos. Ao governo que agora assume, o que mais desejo é que consiga fazer com que as elites modifiquem a forma como concebem o Brasil e o seu papel nele.
O sucesso do governo Lula/PT está além da capacidade que possam apresentar para administrar a res publica, é preciso cuidar, antes de tudo, do que vem a ser a coisa pública.
Moral da história: se o Brasil é realmente o país do futuro, é melhor começarmos a nos mexer no presente.
Conselho Literário:
“quem conhece a vegetação de nossa terra desde a parasita mimosa até o cedo gigante; quem no reino animal desce do tigre e do tapir, símbolos da ferocidade e da força, até o lindo beija-flor e o inseto dourado; quem olha este céu que passa do mais puro anil aos reflexos bronzeados que anunciam as grandes borrascas; quem viu, sob a verde pelúcia da relva esmaltada de flores que cobre as nossas várzeas, deslizar mil repetis que levam a morte num átomo de veneno, compreende o que Álvaro sentiu”.
O Guarani – José de Alencar
Originalmente publicado em:
Revista Autor (www.revistaautor.com.br)
Política
Ano III nº 19 – Janeiro de 2003