As bases da expansão da União Européia
01/10/2005Entre os principais contributos que a Europa deu às relações internacionais na segunda metade do século XX foi a construção daquilo que hoje chamamos de União Européia. Na primeira metade do século XX o mundo, estasiado, viu duas guerras mundiais assolarem países inteiros e mostrarem as piores características que um ser humano é capaz de ter. Os Estados viram-se envolvidos em esforços de guerra que utilizaram os recursos dos países em prol da destruição. Diante deste quadro e superada as primeiras manifestações de repulsa que se criou dentro do território europeu, o que se viu foi um enorme esforço para evitar o surgimento de uma nova incompreensível guerra, como dizem os franceses.
Esse processo ocorreu inicialmente através da economia com a criação da Comunidade Européia do Carvão e do Aço e o posterior estabelecimento da Comunidade Econômica Européia. Assim sendo, podemos perceber que se o processo apresenta uma estrutura econômica, suas motivações iniciais são eminentemente políticas; portanto o entendimento de qualquer avanço na integração/expansão européia deve necessariamente levar em conta os dois parâmetros mencionados (ao longo do processo observa-se um movimento pendular entre estes parâmetros).
Desde o fim da Guerra Fria novas questões vêm sendo colocadas aos europeus, sobretudo no que diz respeito ao futuro da união. O debate tradicionalmente dividiu-se entre aqueles que defendiam um maior aprofundamento qualitativo das instituições comuns, buscando-se o aumento da sua legitimidade. De outro lado, encontravam-se os defensores da expansão quantitativa da união, agregando-se novos Estados-membros. O embate entre estas duas posições permitiu que ambas se desenvolvessem ao longo dos últimos 5 anos.
Recentemente a Irlanda autorizou a ampliação da união acabando com o último entrave interno às discussões sobre a expansão da União Européia, que agora discute as formas de entrada de 10 novos membros. Tais reformas serão concluídas em 2004 e significam um importante passo no sentido de aprofundamento da integração européia (sobretudo em sua dimensão política-estratégica).
Com a solidificação institucional e política das relações entre os países e com o fim da Guerra Fria os países membros da união iniciaram debates mais sérios sobre quais seriam os limites geográficos da Europa, o que envolvia um conjunto de outras questões como nacionalismo, identidade e disposição cooperativa. A expansão da UE para o leste, ainda que concluída somente em sua fase inicial, demonstra uma forte tendência a superação das questões bipolares na estruturação da política européia.
Os avanços na integração européia foram fortemente marcados por uma dupla tensão: (1) por um lado havia o medo interno de qualquer recaída no relacionamento entre os países europeus e que pudesse levar à novas guerras, tão vívidas na mente de alguns dos principais articulistas da união e (2), por outro lado, a dinâmica internacional colocava significativos entraves na discussão sobre o que é ser europeu e, portanto, quais seriam os limites da expansão.
No entanto, se a expansão parece tornar-se exitosa do ponto de vista político, a dimensão econômica ainda não está resolvida e requerirá o dispêndio de uma quantidade relativamente alta de esforço político, tanto no âmbito doméstico de cada Estado-membro quanto na estruturação da UE e de suas relações com o resto do mundo. Neste ponto, a principal questão que se apresenta é a da política agrícola, o que está diretamente ligada ao incentivo econômico às regiões menos desenvolvidas (que hoje ocupam 89% do orçamento da UE). Se o processo não for bem-estruturado os Estados-membros hoje receptores destes recursos sentir-se-ão prejudicados pelo ingresso dos novos membros e isso resultará numa tendência menos cooperativa e, portanto, atrasará o aprofundamento da integração econômica ao mesmo tempo em que poderá criar traumas profundos na integração política.
Para se preparar para a inclusão dos novos membros, os líderes da UE reuniram-se na Grécia para prepararem a Constituição da UE, que será efetivamente discutida em outubro próximo. Entre as importantes transformações previstas na Constituição é a exposição mais clara dos processos decisórios europeus, expondo claramente quem guarda quais competências e como estas devem ser levadas a cabo. O caminho não deverá ser fácil e exigirá uma nova rodada de cessão de parte das soberanias nacionais para a UE; algo que se apresenta atualmente com dificuldades operacionais, mas que encontra importantes antecedentes na própria união, como é o caso da adoção do Euro e o fim das fronteiras intra-européiais.
A despeito destas dificuldades estruturais, o avanço da União Européia rumo à adoção de uma Constituição também apresenta entraves sistêmicos. A Conferência Intergovernamental que deverá discutir o projeto de Constituição preparado pela convenção presidida pelo ex-presidente francês Valéry Giscard d’Estaing agora é presidida pelo presidente italiano Silvio Berlusconi, que não só não tem uma imagem sustentável na visão de seus pares europeus como também não possui o devido tino diplomático para a condução das sensíveis discussões que ocorrem no âmbito da UE.
No nível bilateral as relações também não são muito promissoras na medida em que tanto a esquerda quanto a centro-direita francesas e os sociais-democratas alemães (que são as principais forças políticas dos dois Estados-pilares da UE) são abertamente contrárias a Berlusconi. O apoio italiano à intervenção estadunidense ao Iraque ainda não foi totalmente digerido pelos europeus – tradicionais defensores das instituições multilaterais internacionais e do direito internacional.
Ao que tudo indica, o avanço da EU sofrerá um significativo atraso em sua execução e, provavelmente, em sua agenda durante a presidência italiana. A questão que se coloca para o futuro da integração é a de saber até que ponto os impactos políticos de Berlusconi na presidência do Conselho Europeu criará uma situação na qual posições divergentes vejam-se ampliadas e façam com que os Estados-membros usem mais tempo para discuti-las do que para preparar suas estruturas domésticas para a integração. E este problema ganha ainda um complicador temporal, já que o avanço para o leste já começou.
Cotidiano:
O Mercosul, caso queira ser mais do que uma peça de retórica dos presidentes do Cone Sul, deverá encarar os problemas com a mesma profundidade como a Europa vem tratando de sua integração. De outra forma, continuaremos a fazer as coisas para inglês ver.
Moral da História:
Economia e Política podem até ser gêmeos, mas jamais siameses.
Conselho Literário:
"Os horrores da Segunda Guerra Mundial e seus flagelos, o mal ativo do exercício prepotente do poder por regimes totalitários e o mal passivo do sofrimento de suas inumeráveis vítimas instigaram a procura e reacenderam a esperança na possibilidade de se construir uma humanidade pacífica"
Comércio, Desarmamento e Direitos Humanos – Celso Lafer
Comércio, Desarmamento e Direitos Humanos – Celso Lafer
Originalmente publicado em:
InterCivitas (Faculdades Tancredo Neves, 2003)
Revista Autor (www.revistaautor.com.br)
Internacional
Ano III – nº 30 / Dezembro de 2003