O que é cidadania? (apontamentos)
30/09/2005Cidadania, mesmo sendo um conceito muito vago e sem substância, transformou-se numa das bandeiras de luta mais comum da atualidade. Seu poder interno de legitimação é tão grande que seu simples invocar parece tentar justificar todo um conjunto de objetivos e utopias.
A maior confusão que envolve o uso do complexo conceito que é a cidadania é aquele entre cidadania e dignidade humana. Ainda que ambas idéias tenham uma forte correlação entre si, a dignidade humana está ligada ao indivíduo ao passo que a cidadania ao todo social. Se em uma, ao focalizarmos o indivíduo, devemos nos concentrar primordialmente numa relação Estado/sociedade para o indivíduo; na outra o sentido é invertido: pensamos como este pode fazer parte e atuar naqueles.
Existe também a tendência a englobar na idéia de cidadania um conjunto de ações voltadas diretamente para as melhorias de condições de vida do indivíduo e seu meio. Esta tendência apresenta alguns riscos ao colocar todo o aparato estatal que está diretamente ligado ao exercício da cidadania a serviço de práticas e objetivos que findam por promover desigualdades no corpo social.
Antes de ser o resultado das três gerações de direitos, a cidadania é fruto da tese arendtiana do direito a ter direitos. Quando pensamos na consolidação e no exercício da cidadania, devemos concentrar-nos no pertencimento do indivíduo à cidade (a polis grega). Este pertencimento, de qualquer forma, não deve ser interpretado como posse mas como a possibilidade de fazer parte de.
Quando adotamos essa segunda visão, podemos perceber que cidadania implica em reconhecer-se como membro de um conjunto e, ao mesmo tempo, ser reconhecido como um membro. É justamente uma leitura rápida e descuidada desta segunda condição que leva à confusão entre cidadania e dignidade humana.
Como estamos tratando de um conjunto de características particulares (está limitado por fronteiras geográficas politicamente dadas; é gerido por um aparato político-administrativo que é controlado e dirigido por uma pequena parcela dos membros do conjunto), devemos pensar este pertencimento em função das características do conjunto.
Outra dificuldade que temos ao penar no que é cidadania vem dos múltiplos papéis desempenhados por cada um dos indivíduos. Podemos ser pequeno-agricultores, pais de família, membros de uma comunidade religiosa e cidadãos. Qualquer destes papéis não nega o de cidadão, ainda que possa, em alguns casos, limita-lo.
Um indivíduo, reconhecendo-se como um membro de seu país e sendo por este reconhecido com o mesmo status é automaticamente alçado à condição de cidadão pois passa a ter a sua disposição uma série de canais para participação, controle e influência das instituições político-sociais voltadas para o todo. Estes canais vão do direito de votar ao direito de ser votado; da liberdade de expressão à possibilidade de assumir cargos políticos.
Por outro lado, só isso não é suficiente. Para que o indivíduo seja de fato um cidadão, ele precisa considerar-se um membro do país. Mais do que uma mera questão psicológica, isso envolve um intrincado complexo político-social. Garantir a "igualdade perante a lei" não é condição suficiente quando há desigualdade política (sem entrarmos nos problemas que a aguda desigualdade econômico-financeira traz ao Brasil).
Incapaz de perceber-se como membro de seu país, o indivíduo desenvolve suas atividades cotidianas à margem dos canais e lugares de participação na vida pública, impossibilitando assim qualquer ação que possa vir a influenciar a sociedade como um todo. Com isso, é forçado a ficar em uma posição reativa, quando não passiva. Desta forma, melhoras em suas condições de vida são vistas mais como benesses, ao invés de serem resultado da sua participação pública.
Ao termo em mente que esta condição não é resultado puro de uma escolha pessoal,. devemos enfrentar o desafio de como criar mecanismos e ações que possibilitem ao indivíduo sentir-se como um membro. Para os cidadãos plenos – aqueles que observam as duas condições da cidadania – negar a existência deste desafio ou evitar dele se ocupar, é negar a própria cidadania.
Originalmente publicado em:
Revista Autor
Ensaio – Outubro de 2001