O entretenimento é uma forma de comunicação que busca respostas/reflexos automáticos, iguais e previsíveis (vejamos alguns filmes e as músicas feitas para serem rigorosamente acompanhadas por coreografias, e teremos a real dimensão do que estou falando). A obra de arte (assim como a arte) também procura respostas/reflexos, mas não pode conter em si mesma ditames ou limites de quais devem ser estar respostas/reflexos. Ao trabalharem de forma profunda e articulada com os sentidos e com a experiência (daí constantes alusões ao social e ao histórico) apresentam estímulos livres, que serão absorvidos de formas diferentes por todos e cada um daqueles que interagem com as obras.
Muitas vezes, torna-se uma tarefa difícil estabelecer o limite prático entre a arte e o entretenimento, sendo que uma mesma obra pode servir aos dois propósitos concomitantemente. Neste caso, a variação entre um e outro estarei mais no público do que propriamente na obra. Isso coloca-nos a importância de o autor conseguir conceber também o público ao qual se dirige.
Sabemos que as sociedades contemporâneas são marcadas por fortes tendências à estruturas massificadas; desta forma, os movimentos artísticos e os próprios artistas pensados individualmente, vêm-se forçados a lutar contra uma poderosa força que os impele à grandes generalizações, transformando suas obras em produtos facilmente colocáveis em mercados globais.
A restrição de artistas a guetos leva à interpretações automáticas, por parte do grande público e seus críticos, como obras de pouca expressão e existência passageira. É preciso que a verdadeira crítica de arte ultrapasse este estado de debilidade e consiga recuperar sua verdadeira participação nas belas artes: ignorar o todo (que deve ser apreendido e formulado pelo público) e destacar algumas das partes, de forma a evidencia-las, colocando-as sobre o foco das releituras. Com isso, o público ver-se-á forçado a questionar o seu todo já formulado, agregando constantemente novos fatores. É essa dinamicidade que permite à obra de arte ganhar seu status de meio de comunicação e não, como nos apontam alguns, um fim em si mesmo.
O autor que concebe uma obra em si mesma – completa e acabada – não faz arte, faz entretenimento, pois ignora qualquer participação do público que não aquela do consumo.
A arte moderna e o curador
Acúmulo. Talvez este seja o termo que melhor consiga resumir a história do ser humano. Temos a tendência e a necessidade de acumular as mais diversas coisas, sejam elas abstratas ou concretas; e o montante conseguido, participando de uma relação consigo mesmo e com outros montantes, dão-nos as culturas.
Desde o nascimento da Modernidade – Revolução Industrial – o padrão de acumulação vem sofrendo profundas mudanças, resultando em um padrão mais baseado na quantidade do que na qualidade. Após o excessivo aprofundamento deste padrão na estrutura social, alguns grupos passaram a ocuparem-se com a sua diferenciação através do padrão qualitativo. Foi neste momento que a diferença entre arte e entretenimento alcançou o apogeu, resultando em uma dualidade forjada. Elites assim auto-entituladas passaram a reservar a produção artística a si ao passo que qualquer outra manifestação deste tipo era entendida como entretenimento (p.e. o cinema era uma arte quando foi lançado, e hoje é concebido – com dignas exceções – como entretenimento de massa).
Dois estilos de vida foram criados, estilos que recusavam-se a observar limites de classes ou estamentos. Ambos com alcance mundial: os freqüentadores dos museus pelos mundos e a massa (não poucas vezes ignara). Cada grupo ganhou seus próprios gurus: para a massa foram dedicados os frios meios de comunicação em massa, ao passo que para as elites ficaram os curadores.
Origens profundas. O ser humano, em seu longínquo momento de morador das cavernas, começava a fincar os primeiros pilares do edifício que depois veio a ser a arte. Do som produzido no chocar de dois ossos aos primeiros rabiscos nas paredes das cavernas, podemos encontrar a origem da arte pois eles serviam como formas de comunicação.
Quanto mais o ser humano afastava-se de sua origem rude e procurava reverter a ordem de dominação natureza-humano, mais patente ficava a necessidade de elaboração de instituições e formas de relacionamento padronizadas, sedimentando o que ficou conhecido, mais tarde, por comunidade. Para que isso fosse possível, não só o repertório de informações teve de ser drasticamente ampliado, como também as formas de comunicação destas informações teve que sofrer uma melhora também qualitativa a fim de conseguir responder ao aumento das características abstratas das informações.
Da linguagem mímica e oral, passamos a outras formas de expressão como as variações da linguagem mímica (danças e sinais feitos com o uso do corpo) e da linguagem oral (fala, música e outros sons). O contínuo aumento do poder de abstração fez com que surgissem formas de comunicação inteiramente externas ao corpo, como a confecção de instrumentos e símbolos. Assim, esta nova forma de comunicação, para aumentar sua possibilidade de sucesso, foi forçada a observar mais os signos e formas de comunicação coletiva do que os parâmetros puramente individuais. Disto podemos tirar uma lição – esquecida na atualidade: uma obra de arte é a materialização/consumação de uma forma de comunicação, não um fim em si mesmo.
A arte progrediu muito desde aquele tempo, ganhando até mesmo algum espaço de dedicação por parte da ciência. Movimentos artísticos seguiram-se a combateram-se, tornaram-se hegemônicos e depois apenas dominaram salas de museus. Como podemos entender esse movimento sem recuperarmos a lição apresentada acima? Esses movimentos pertenceram ou forma promovidos por grupos localizáveis temporal, local e socialmente e, assim como esses grupos um dia perderam parte do potencial comunicativo, sua arte – apenas mais um dos canais de expressão – viu-se despida de seu apelo do momento anterior.
As artes. Assim como escrevemos memórias e livros de história, a arte também ganhou seu lugar especial na interminável necessidade que temos de recuperar, guardar e reinterpretar o passado. Em face disto, surgiu a ação do guardar, o espaço para guardar (o museu) e o responsável pela organização deste conjunto de informações (o curador).
Quando vamos à uma exposição impressionista, é importante que o curador faça a ponte entre a forma particular de comunicação contida nos quadros impressionistas (com seu tempo, história e crítica social particular) e o público atual. Ao curador cabe a difícil tarefa de traduzir a linguagem daqueles tempos, a fim de que ela seja compreensível na atualidade. Como toda tradução, encontramos interpretações – e aqui está a fonte de sucesso ou fracasso de um verdadeiro curador.
Se o raciocínio aparentemente lógico que foi desenvolvido aqui pode nos convencer facilmente, teremos um ponto de inflexão e ruptura quando chegamos à arte contemporânea. A arte é contemporânea. Nós somos contemporâneos. Há curadores de arte contemporânea. Em outras palavras: a arte contemporânea é uma forma de comunicação dos contemporâneos e, mesmo assim, precisamos de um tradutor. Qual é o sentido de um curador quando trata-se de arte contemporânea? Como ele existe e está atuante, podemos chegar a duas conclusões imediatas:
1. o público não tem capacidade de entendimento e/ou está deslocado de seu tempo. Se isso for verdade, seremos forçados a concluir que o mundo pertence a algumas elites conscientes de seu tempo ao passo que a maioria da população estaria num espaço da não-história, imersa numa condição de comunicação precária. A rica, ainda que ignorada por algumas elites mesquinhas, cultura popular parece negar esta tese;
2. a obra de arte não é capaz de expressar-se sozinha, ganhando vida somente através da mediação do intérprete (o curador). Neste caso, não podemos dizer corretamente que se trata de uma obra de arte (materialização da comunicação) porém da intenção de seu uma. Obras que não conseguem falar com seus contemporâneos leitores, sendo compreendida somente pelo artista e pelo grupo de "iniciados" que consegue penetrar na esquizofrenia daquele, não devem ser chamadas de obras. Com capacidade de expressão praticamente nula deveriam ser classificadas como extravasamento de energia criativa mais do que tentativa de comunicação.
Existem várias causas que competem para a falência disto que se ousou chamar arte contemporânea:
1. a ansiedade típica dos tempos modernos alcança níveis nunca antes sonhados. Não é mais o fato que se torna obsoleto tão logo é consumado, é o projeto que se torna obsoleto antes mesmo de ser efetivado. No momento em que a obra de arte está sendo concebida, já torna-se algo ultrapassado, exigindo um aumento da complexidade da mesma a fim de ao menos materializar-se. Desta forma, o processo da comunicação é destruído ainda durante sua gestação: a destruição das coisas ainda não-concretizadas diminui, quando não impossibilita, a participação do público;
2. a voracidade consumista, que ganha contornos especiais nos consumidores de arte (que fazem questão de diferenciarem-se dos consumidores de entretenimento) acaba por exigir uma obra ainda imatura, transformando-a de forma de comunicação em informação em si mesma. Neste caso, o objetivo não é o consumo das idéias mas da materialização de sua expressão (no caso, tentativa).
Querer para esse rápido movimento que tanto nos afeta é ilusão, ele faz parte de nosso mundo e de nós mesmos. Por isso, se queremos uma arte contemporânea, devemos primeiro conhecer nossa situação, depois aprenderemos a nos comunicar com ele, para, aí sim, passarmos a exercitar nossa criatividade artística. De outra forma, continuaremos vivendo sob o ditame máximo da Modernidade: vocês fingem que fazer, eu finjo que vocês fizeram.
Originalmente publicado em:
Revista Autor
Ensaios – Julho de 2001