Pra frente, Brasil
06/08/2007"Esse Brasil lindo e trigueiro/ É o meu Brasil brasileiro/ Terra de samba e pandeiro." Em 1939, era assim que Ary Barroso descrevia o país, inaugurando com seu hino de exaltação Aquarela do Brasil o gênero ufanista que imperou durante a ditadura do Estado Novo. De lá para cá muita água já rolou – não exatamente das "fontes murmurantes" de Ary ou das "cachoeiras e cascatas de colorido sutil" que Silas de Oliveira cantou em Aquarela brasileira – e o Brasil não é mais aquele (assim como qualquer outro canto do mundo). Mas qual é, então, a descrição do país hoje? É forró, é hip hop, é axé, é funk, é o fim do caminho, são as águas de março fechando o verão? Nada disso. Ou tudo isso.
Embaixador do funk, o DJ Marlboro sai em defesa da liberdade. "Se eu toco Wagner junto com forró hoje, vai soar estranho. Mas se eu tocar duas, três, quatro vezes, já terei criado uma outra coisa, nova, diferente." O DJ acha que é exatamente este o significado de ser brasileiro. "O Brasil é multicultural, é a mistura de várias raças, fusão de várias culturas. E já somos assim desde a colonização, bem antes da internet, da globalização. Isso nos fez uma amostragem do que o mundo será, uma avant-première do planeta no futuro."
Marlboro gosta de misturar influências, de fundir elementos de universos diferentes, gosta de ingredientes eletrônicos e de folclore (palavra hoje substituída pela expressão cultura popular). "E o resultado de tudo isso passa a ter uma cara própria, uma identidade, como o funk, que tem de James Brown a Folia de Reis." Do que Marlboro não gosta é da resistência à mistura. "Num debate, perguntaram se a influência americana não atrapalhava a música brasileira, carioca. Respondi com outra pergunta: qual é a nossa língua? É portuguesa! Veio de fora também. Se o cara quiser zelar por um purismo que não existe, vai ter que bater tambor com índios no Xingu, e mesmo ali há presenças ancestrais que não são brasileiras." O ponto de vista do DJ, que também se preocupa com assuntos como a preservação do frevo e da Folia de Reis, não chega a ser novidade. Há quase um século, Oswald de Andrade propagava a Antropofagia: movimento que propunha que o Brasil devorasse a cultura estrangeira e criasse, a partir do que já tinha e das novas influências, uma cultura própria. Pesquisador de Relações Internacionais na UnB (Universidade de Brasília), Rodrigo Cintra também acredita na reinvenção de experiências. "Se você for a um restaurante italiano em São Paulo, é algo que você não vai encontrar na Itália. É uma releitura de alguma coisa que veio de fora." O pesquisador tem uma receita. "Basta ter consciência e valorizar o que se tem porque é bom, e não porque não se quer o que vem de fora – o que seria xenofobia. Assim, também não se corre o risco de ver minada a sua identidade." E o que seria essa identidade?
O professor ensina que a identidade nacional, diferentemente da identidade patriótica, é abstrata: refere-se ao vínculo que se tem dentro de uma nação, ao sentimento de pertencimento. Assim, o samba, o futebol, a mulata (o "trigueiro" a que se refere Ary Barroso) são parte da geléia geral chamada identidade nacional. Já a bandeira, o hino, as cores verde e amarela, elementos concretos, dizem respeito ao patriotismo. E ele explica que as duas coisas se misturam, por exemplo, em época de Copa.
Para se ter uma idéia do poder da identidade nacional, basta dar uma olhada na América do Sul e perceber como no Brasil, tão grande, com regiões e povos de perfis tão diferentes, predominou a idéia de unidade, enquanto o resto da América do Sul, apesar de falar a mesma língua – o espanhol –, se quebrou em muitos países. Cintra explica que a presença da família real no Brasil foi importante para essa união em torno de um denominador comum: ser brasileiro.
"A identidade nacional é a identidade que eu forjo. Mulata, samba e futebol, por exemplo, tidos como características nacionais, são um estereótipo carioca", diz o pesquisador, que lembra que o samba se limita a áreas restritas do país e que mulatos correspondem a apenas uma parcela da população. E o futebol? Ah, este, endossa o pesquisador, se tornou a identidade maior dos brasileiros. "É uma experiência muito profunda, há uma relação extremamente apaixonada. O futebol não teria nada a ver com Manaus, por exemplo, onde as áreas alagadiças não favorecem o esporte, mas lá também ele é adorado", diz o professor, que, ironicamente, é um brasileiro que não liga a mínima para futebol. Do que ele é fã mesmo é do tal jeitinho brasileiro.
"Temos que parar de achar que o jeitinho é ruim. Ele é fantástico! É uma capacidade de adaptação e de criar soluções alternativas que o brasileiro tem. Por causa disso, o Brasil é reconhecido internacionalmente pelos seus grandes negociadores, como (o enviado especial da ONU ao Iraque) Sérgio Vieira de Mello (1948-2003)." E nisso está presente também o conceito do "homem cordial", do autor Sérgio Buarque de Holanda, que explicava que o brasileiro não é tão apegado às regras, se guia menos pelo lado racional e mais pelo coração (daí o uso da palavra cordial, "relativo ou pertencente ao coração", segundo o dicionário do primo distante Aurélio).
Sem apego às regras (para o bem e para o mal), hospitaleiro, caloroso, o brasileiro abre os braços, a casa, a mente e o tal coração para o que vem de fora. "O povo brasileiro é cooperativo. É aquela coisa de se oferecer para segurar sua bolsa no ônibus, ajudar com a mala, mudar o próprio caminho para ensinar um endereço a quem pede informação. Diante de um estrangeiro, a reação é ‘ele tem que ser um de nós, tem que jogar futebol com a gente’", diz Cintra.
Deu no New York Times: "Ninguém sabe perfeitamente por que o Orkut pegou entre brasileiros e não entre americanos, apesar de que o fato de se tratar de uma rede onde se entra apenas por meio de convite pode ser a explicação para a explosão no Brasil. Em 2005, numa entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, Orkut Buyukkokten, o criador do site, disse que isso pode ter acontecido porque brasileiros são ‘um povo amigável’, e talvez porque alguns de seus próprios amigos, entre os que primeiro se juntaram à rede, tinham amigos brasileiros." Então, em resumo, o brasileiro seria multicultural, uma amostra que antecipa como será o mundo no futuro, um povo que reinventa as influências que sofre, uma gente que tem um jeitinho especial de resolver as coisas, uma nação que coloca o coração acima do lado racional e, além disso tudo, formada por pessoas amigáveis? A resposta não é tão fácil.
O antropólogo Hermano Vianna, que interage como poucos com o país, colocou no ar o site Overmundo (overmundo.com.br), um projeto que respira Brasil e identidade nacional. Os anos de experiência e estudo o tornaram escolado diante do tema da identidade brasileira, e ele sabe que corre grande risco de prepotência, superficialidade ou no mínimo precipitação quem se atrever a bater o martelo sobre questão tão complexa. "O foco do Overmundo é a diversidade da cultura produzida no Brasil. Preferimos falar ‘cultura produzida no Brasil’, no lugar de cultura brasileira, para não entrar no debate interminável sobre a definição do que é brasileiro ou não. Sabemos que essa definição muda de acordo com a região geográfica, o grupo social ou a época histórica."
Na hora de explicar quais colaborações poderiam ser enviadas para o Overmundo, Hermano escreveu resposta elucidativa: "Claro que podemos falar de punk cantado em inglês ou haicai escrito em japonês desde que tenham sido criados no Brasil. Mas mesmo com essa definição aberta, o Overmundo não é o local adequado para você publicar um texto sobre o último livro do Harry Porter, a não ser que fale sobre como o livro é recebido no Brasil, ou é lido pelas crianças brasileiras. Outro exemplo: se você quiser publicar uma crítica sobre o último disco do White Stripes, por favor procure outro site (há muitos que vão ficar felizes em receber sua contribuição); mas se o texto for uma crônica sobre a passagem do White Stripes em Manaus, com reflexões sobre a cena do rock indie na Amazônia, isso sim tem a cara do Overmundo".
Fonte: http://www.revistaoi.com.br/nova/cobertura_23.asp