Guerra do Iraque e os novos padrões do sistema internacional
01/10/2005Desde a queda do Muro de Berlim (1989) e, sobretudo, do desmembramento da União Soviética (1991), o mundo vem procurando delinear seu novo perfil. Ainda que alguns analistas procurem chamar a atual estrutura internacional de "globalização", por falta de alternativa usamos "pós-Guerra Fria".
A estrutura bipolar congelou as formas de relações internacionais por aproximadamente cinco décadas, condicionando fortemente como fazemos nossas análises. Em geral, acontecimentos como a guerra da Iugoslávia, os atentados de 11 de setembro ou as guerras EUA-Iraque são analisados sob óticas mais ortodoxas das teorias das relações internacionais.
A segunda guerra (atual) contra o Iraque pode ser analisada como uma continuação da primeira guerra (1991/1992), não tanto pelos objetivos do conflito em si, mas pela implementação de um projeto de poder cuja gestação remonta ao governo de Ronald Reagan (1981/89). Neste momento buscou-se o fim do conflito político-ideológico de forma a fortalecer a posição estadunidense no sistema internacional, sobretudo em sua dimensão econômica.
Durante a Guerra Fria as relações entre as duas super-potências eram de tal natureza que suas atuações no sistema internacional respeitavam uma lógica de exclusão de interferência no campo de influência alheio. Com seu fim, o sistema internacional perdeu esta referência e passou a contar com as estruturas internacionais institucionalizadas já existentes, destacando-se o caso das Nações Unidas (ONU) e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
O governo de George H. W. Bush (1989-93) agiu num sistema internacional em desmembramento, o que permitiu aos Estados Unidos desenvolverem seus primeiros ensaios de tendência imperialista. Já durante o governo Willian J. Clinton (1993-2001) que encontrou um sistema internacional mais permissivo para o desempenho de suas ações houve uma significativa mudança da agenda internacional, de forma que os Estados Unidos puderam desenvolver um grande crescimento econômico interno.
Neste sentido, o presidente George W. Bush (2001-presente) encontra no âmbito doméstico um país economicamente fortalecido e politicamente estável e no âmbito internacional uma ordem político-institucional ultrapassada e sem a presença de pólos estruturais alternativos no curto-prazo. Essas características são fundamentais para que entendamos a forma pela qual os Estados Unidos tomam suas decisões bem como o porquê de suas escolhas.
A guerra contra o Iraque reabriu a discussão sobre o sistema internacional contemporâneo bem como de quais são as limitações dos atores, sejam eles quais forem. A discussão sobre a guerra logo perdeu seu foco originário, ou seja, o possível descumprimento de resoluções da ONU por parte do Iraque, para ganhar a dimensão de posicionamento favorável ou contrário à atuação dos EUA observando apenas suas próprias formas de compreender o mundo.
Ainda que manifestações contrárias à guerra ocorressem em vários países, o centro da questão ocorreu na Europa. As análises ultrapassaram os limites da guerra para encontrar seu eixo principal de discussão na polarização política entre Estados Unidos, de um lado, e Alemanha/França de outro. Tal discussão teve como primeiro cenário o Conselho de Segurança, porém, em face de seus procedimentos operacionais, logo perdeu a legitimidade de ser um fórum concreto para as discussões. Na ausência de outras possibilidades de condução das negociações o caminho encontrado foi a volta à unilateralidade.
Ao tomar tal forma, tais discussões apresentam-se como um cenário privilegiado para pensarmos os possíveis desdobramentos do sistema internacional.
O fortalecimento de uma linha mais unilateral, somado ao sistema institucional internacional ultrapassado faz com que o governo estadunidense entenda o mundo de uma forma mais simplista no qual existem dois lados: nós e eles. A linha dura do governo (falcões) acredita que aqueles países que não se colocam favoráveis à guerra são inimigos; isso significa que o espaço para divergência está cada vez mais restrito, sobretudo quando temos em mente as crescentes limitações da ONU.
Com isso, o diálogo entre os vários atores internacionais se enfraquece já que a linguagem é diferente para cada um deles. Os presidentes Jacques Chirac (França) e Vladmir Putin (Rússia) afirmam que a disputa resume-se à discordância sobre os meios da guerra e não sobre os fins da mesma, procurando uma reaproximação politico-diplomática com os Estados Unidos. Já o presidente Gerard Schroeder (Alemanha) teve seu limite de ação diminuído ao não deixar uma porta entreaberta e colocar-se como o principal líder contrário à forma estadunidense de condução da questão.
A polarização interna da União Européia também demonstrou a fraqueza da união bem como o amadorismo de suas bases de atuação externas, como demonstram tanto o caso atual quanto o do reconhecimento da Croácia em meio à guerra da Iugoslávia.
Em seu processo de solidificação, a União Européia concentrou-se na coesão interna, sobretudo para aquelas questões ligadas à performance econômica e, com isso, deixou pouco espaço para discussões de sob quais condições e de que forma ocorrerá a tomada de decisões sobre questões internacionais.
A divisão interna das sociedades européias em torno da questão da guerra, ainda que possa enfraquecer momentaneamente as coalizões governamentais tendem a colocar na pauta das agendas domésticas a questão da política externa da União Européia. O caso da Alemanha é o mais emblemático neste sentido já que a discussão sobre a guerra ocorreu num cenário eleitoral, quando a questão política apresenta-se com alta sensibilidade para a população. Para sair vitorioso nas últimas eleições, Schroeder aproveitou a discussão da guerra para afirmar sua condição de liderança.
Ainda que tal processo não tenha ocorrido em igual intensidade na França e nos demais países europeus, o destaque à guerra dado pela mídia trouxe para o debate interno uma questão internacional extra-União Européia. Uma vez encerrada a guerra e encaminhada a questão do gerenciamento iraquiano pós-guerra o debate acerca da questão de segurança internacional e do papel da Europa na condução dos conflitos internacionais tornar-se-á um assunto importante.
Nesse estágio, a União Européia começará a sofrer uma pressão maior em direção ao estabelecimento de uma atuação internacional sustentável, especialmente diante da ampliação para o Leste, que envolverá novas questões geopolíticas e geoeconômicas em sua dinâmica interna.
A crise aberta dentro da OTAN, em face das posições divergentes adotadas pelos vários Estados-membros também estimulará a discussão interna acerca dos objetivos da Organização, retomando uma discussão que tem seu início na expansão da quantidade de membros externos à região do Atlântico Norte, ainda que de importante significado para a estabilidade da região.
A guerra contra o Iraque, neste sentido, mais do que um problema bilateral (petróleo) ou multilateral (observância de resoluções da ONU), apresenta-se como um primeiro ensaio para os novos padrões da política internacional.
Ano III nº 22 – Abril de 2003