Reforma da CLT: a quem interessa?

30/09/2005 0 Por Rodrigo Cintra
Antes de ingressar no assunto deste artigo, gostaria de convidar o leitor a ajudar-me com algumas questões de ordem. Vivemos no subdesenvolvido Brasil ou nos desenvolvidos Estados Unidos? nossa sociedade tem uma estrutura marcada pela desigualdade e desarticulação ou possui um perfil quase nórdico? Colocadas desta forma, não parece muito difícil chegarmos às respostas; no entanto, conforme fui aproximando-me da discussão sobre a reforma da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), tais perguntas tornavam-se incômodas e de difícil resposta.

Tamanha dificuldade em entender o Brasil não é exclusividade desta discussão. Em verdade, de uma forma ou de outra, está presente nos principais debates que envolvem questões ligadas aos rumos que o país seguirá. De um forma simplista e caricata, poderíamos classificar os debatedores – segundo sua fundamentação argumentativa – em elitistas e populares. Enquanto os primeiros valem-se das mais sofisticadas teorias (importadas!), propondo ações baseadas naquilo que acreditam ser o Brasil; os segundos diante da dificuldade em formular uma visão estratégica de país, fazem lutas pontuais e, por vezes, contraditórias. Logo voltaremos a este ponto.

Para discutir a questão da CLT vejo-me obrigado a apresentar minha concepção de lei. A lei não é a verdade escrita, nem mesmo como devem funcionar as coisas na sociedade; antes, é uma trincheira, que marca posições dentro do quadro dos conflitos sociais. Assim, a lei é apenas um meio e não um fim. Os discursos em torno de suas reformas não podem ser compreendidos como exercícios de retórica ou como busca desinteressada pela justiça social; no mundo democrático, estes discursos são as armas e as propostas de reforma a estratégia da batalha. Entremos no debate com consciência disto.

Um primeiro ponto que deve captar nossa atenção é de quais são os principais atores envolvidos. De um lado temo o empresariado, e de outro os trabalhadores (no caso, qualificados: sindicatos). Se a reforma da CLT visa dar mais importância aos acordos feitos entre estes dois grupos, fica difícil entende porque não nos ocupamos de dar liberdade a ambos. No mundo, o Brasil é um dos poucos países que ainda não assinaram a Convenção 87 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que estabelece o regime de liberdade sindical. Se a proposta de reforma da CLT fosse algo neutro, a sociedade e o Estado deveriam deixar que os sindicatos também fossem representantes legítimos dos trabalhadores e não opções únicas (com isso não quero dizer que todos os sindicatos são ruins, porém que nem sempre são representativos).

Uma importante linha argumentativa da reforma é a da flexibilização da legislação, permitindo que as empresas enfrentem com mais fôlego crises econômicas. Concordemos momentaneamente com o pacto de hipocrisia que procura “esquecer” que o capitalismo está calcado no risco (o que são os juros afinal?) e vamos nos ocupar do preparo para as crises. Quantas empresas desenvolvem um programa agressivo de participação nos lucros? quantas apresentam-se dispostas a negociar, juntamente com a flexibilização da CLT participações significativas nos lucros? O resultado a que chegamos é: quando em crise, o trabalhador cede, quando em crescimento os acionistas ficam felizes.

Para sustentar a necessidade de reforma perante a opinião pública, não faltam declarações abstratas e estatísticas. Aqui retomamos aquela idéia de “em qual país vivemos”. A Federação das Indústrias de São Paulo (FIESP), encontrou um conjunto interessante de números: 2 milhões no Brasil, 17 mil nos Estados Unidos e 1,5 mil no Japão seriam as ações trabalhistas no ano 2000. Pronto, a justificativa está dada. Esqueceram-se apenas de dizer que a sociedade japonesa é uma das menos litigiosas do mundo e de que, nos Estados Unidos, já funciona a livre negociação aliada à liberdade sindical, o que justifica uma queda acentuada. Some-se a isto, a estrutura econômica e social estadunidense é muito diferente da brasileira, o que torna o confronto destes números um mero recurso retórico.

Um dos melhores argumentos pró-reforma, ainda que pouco explorado pela mídia, é o de que a flexibilização da CLT possibilitará o encurtamento das distâncias entre as grandes e as pequenas empresas. Como a legislação foi feita para as grandes empresas, a flexibilização permitirá que as pequenas aproveitem parte de seu potencial. O argumento, entretanto, não é suficiente para sustentar a reforma, seria mais proveitoso criar sistemas paralelos, mais adequados às realidades das pequenas empresas, como ocorre com o imposto chamado “Simples”.

A última linha argumentativa que abordarei, e a mais importante, é a questão do poder das partes durante uma negociação. Crises econômicas, no Brasil, não são curtos momentos de exceção, contudo uma constante. Diante das profundas desigualdades de nossa sociedade – e da miséria disto resultante – as elites brasileiras conseguem muito à oferecer, ao passo que a massa, em seu desespero pela sobrevivência, aceita por pouco. Concretamente, as negociações serão do tipo: “ou fazemos assim, ou em mando todo mundo embora. Escolham”. O poder de negociação formal será equilibrado, no entanto, a base social desta negociação será extremamente desvantajosa para os trabalhadores.

Certamente a verdade não é monopólio de um, mas a justiça não deve ser um oligopólio de alguns. Os governistas conseguiram aprovar na Câmara dos Deputados o projeto que prevê a flexibilização da CLT (que agora vai para o Senado), sustentando parte dos argumentos apresentados acima, ao mesmo tempo em que ignoram dados (e logo este governo que é tão simpático aos números!) divulgados pela Secretaria Municipal do Trabalho de São Paulo no dia 3 de dezembro, que apontam para uma taxa de rotatividade no Brasil que alcança os 40% ao ano.

Felizmente vivemos num país democrático – ou, ao menos que insiste em democracia, mesmo quando alguns governantes preferem impor suas idéias e crenças – e a discussão ainda está aberta. Dificilmente a votação no Senado ocorrerá ainda este ano, de forma que a sociedade brasileira ganhou mais tempo para refletir e amadurecer argumentos dos dois lados. Ainda assim, aqueles que estão preocupados com a questão deverão tomar cuidado pois, no Brasil, do Natal ao Carnaval, as preocupações constumam mudar.

Originalmente publicado em:

Revista Autor

Política

Ano I – N. 6 – dezembro de 2001