Que Brasil é este?

30/09/2005 0 Por Rodrigo Cintra
Resenha: Os Instrangeiros – Cristovam Buarque

O momento é de campanhas eleitorais e o resultado, no mundo editorial, é o surgimento de livros dos candidatos (por eles mesmo escritos), oferecendo um pouco de seu perfil e muita munição intelectual para os infindáveis debates políticos. De repente, no meio destes livros "políticos" enfadonhos, surge Os instrangeiros – Aventura da opinião na fronteira dos séculos (Coleção Os Visionautas – Editora Garamond).

O livro é composto por artigos que o autor publicou nos mais variados jornais, selecionados e dispostos por temas afins (mesmo que sem divisões formais), criando-se uma continuidade que não só nos permite entender como pensa Cristovam Buarque, como também o próprio Brasil.

Durante a leitura, o leitor mais sensibilizado oscilará entre a vontade de fechar o livro e procurar esquecer tudo o que leu, e o de sair de casa e fazer alguma coisa pelo Brasil. Suas posições são incisivas e claras; vê-se claramente que os artigos selecionados não querem apresentar um livro de final de semana, para ler sem compromisso.

Chama a atenção a pertinência das críticas e a capacidade que o autor apresenta de expor verdades profundas em duas ou três páginas. O livro é dedicado à Celso Furtado e Gilberto Freyre, dois expoentes da intelectualidade brasileira que têm suas vozes ecoadas e atualizadas nestas páginas de Cristovam Buarque.

Explicar o Brasil é difícil, sobretudo quando se tem medo de ferir os brios deste ou daquele grupo. O pensamento do autor supera este problema pois entende que o Brasil é feito por brasileiros, e todos nós compartilhamos um mesmo imaginário histórico-social. Nas palavras do próprio autor, "o maior entrave à erradicação da pobreza está no fato de que o brasileiro deseja ser rico antes mesmo de deixar de ser pobre" (p. 77).

Os princípios sociais que nos são apresentados no decorrer da leitura nos põe à nu. Porém é um nu que é só nosso, certamente um estrangeiro não conseguirá entender todos os recados que o livro trás; no entanto, muitos de nós também não conseguiremos (ou quereremos?) entender, veremos um livro de coisas "instrangeiras".

Uma pequena seleção de trechos mostra um pouco deste Brasil visto por Cristovam Buarque e ignorado por tantos de nós.

Relação elite-povo e relação mundo-elite brasileira: "A elite brasileira se surpreende ao perceber que o capital global trata como pedintes todos os brasileiros, inclusive os ricos" (p. 59).

Desigualdade não é sinônimo de diferença: "Estas elites viam o povo como diferente, sem semelhança com eles, tanto quanto os brasileiros ricos de hoje vêem os pobres" (p. 66).

Os acontecimentos do cotidiano injusto logo são tidos como normais: "Nós já estamos acostumados a volta ao normal depois de chacinas, assassinatos de crianças, divulgação dos piores indicadores sociais do mundo, corrupção na política, incêndios na Amazônia. É rara a semana em que não ocorre um fato deste tipo e tudo continua normal" (p.69).

O papel do Estado: "A erradicação da pobreza só será conseguida quando o Estado brasileiro sair do paternalismo a favor dos ricos e se transformar em mobilizador do imenso potencial que existe nas massas brasileiras, canalizando-o no sentido de que produzam aquilo de que precisam para sair da pobreza" (p. 75).

A elite e o país: "O maior problema brasileiro não é a falta de dinheiro para criar os empregos necessários aos desempregados, mas a falta de sensibilidade da elite em relação aos problemas sociais, o seqüestro da imaginação brasileira pelo pensamento econômico tradicional e a prisão dos economistas por uma lógica econômica incapaz de criar empregos" (p. 99).

A leitura é enormemente enriquecedora quando temos em mente que o autor é mais que um intelectual, é um político, que transforma suas idéias em práticas; que não usa suas palavras em exercício de retórica porém em exercício de diálogo.

Talvez entre as principais características do autor, seja justamente aquela que é a mais importante para um político: a indignação. Política não pode ser a arte do apaziguamento de discursos, deve ser o caminho para a construção de uma sociedade e isso exige que nos levantemos contra as injustiças.

"O quadro brasileiro pode ser menos impactante do que as chamas e as ruínas concentradas das torres americanas, mas não é menos grave – e o número de vítimas certamente é muitas vezes maior. Por isso, não se justifica a naturalidade como é tolerado por nossos governantes. Os mesmos que ficam com os olhos marejados pelo espetáculo trágico das ruínas em Nova Iorque e nem ao menos visitam as reinas de ‘nossas torres’, não conversam com nossos sobreviventes, não fazem guerra contra o terror social" (p. 142).


Originalmente publicado em:

Revista Autor

Cultura

Ano II – N. 13 – julho de 2002