Cultura política e a consolidação da democracia
30/09/2005A clássica definição de democracia diz-nos que ela é o governo do povo e para o povo. Diante do aumento da complexidade social, agregou-se a idéia do "para o povo", ou seja, fundou-se nos tempos modernos a democracia representativa. Historicamente há um grande intervalo entre esses dois momentos, ficando o primeiro na Grécia Antiga e o segundo na sociedade moderna. A despeito das grandes diferenças entre eles, por qual motivo a democracia voltou à cena? Quais são os valores, objetivos e interesses que estão envolvidos na adoção contemporânea da democracia?
Mantendo-nos nas ciências sociais, podemos buscar no aumento da divisão social do trabalho e da quantidade de informações disponíveis, duas importantes causas da retomada da democracia como "melhor sistema de governo existente". Em outras palavras, foi a emergência da sociedade de massas que exigiu uma forma de governo mais descentralizada (porque dinâmica) e representativa (porque plural).
Ainda que essas forças tenham pressionado pela democracia, em sua versão representativa ela sofreu contínuas interrupções nos lugares nos quais foi implementada (com honráveis exceções, como nos Estados Unidos); dando lugar inclusive aos mais bárbaros e desarazoados movimentos totalitários que o ser humano já empreendeu.
Em face desse quadro confuso, muitos teóricos conservadores concentraram suas atenções nas instituições políticas do Estado Moderno para explicar a preferência por um ou por outro sistema de governo. No mesmo período, teóricos progressistas ocuparam-se das "leis sociais" que faziam com que a democracia fosse rapidamente substituída por outro sistema, ou mesmo restaurada. A despeito dos enormes e significativos avanços que lograram, poucos conseguiram entender a democracia além de sua instrumentalidade de governo (o que envolve os canais e formas de governar, bem como a legitimidade da política).
Não por menos, encontramos constantemente nos discursos políticos referências ao povo, à soberania popular, ao governo voltado para o povo… No entanto, quando voltamo-nos às práticas destes mesmos oradores, tudo o que vemos é um governo voltado para uma compreensão de povo, e não necessariamente para o que o povo clama (isso para ficarmos nos governantes imbuídos de sentido público). Assim, um primeiro problema que devem enfrentar aqueles que acreditam na democracia é o de aproximar compreensões discursivas da realidade.
Seguindo a linha dos elitistas, poderíamos propor um aprimoramento das instituições políticas (neste caso o destaque vai para as formas de escolha dos governantes). No entanto, uma análise mais cuidadosa pode mostrar-nos que essa solução ignora o verdadeiro problema da democracia, a saber, a existência ou não-existência (e a qualidade!) da cultura política democrática.
Uma crítica comum atualmente, diz que o povo não sabe escolher seus governantes, que troca votos por favores pessoais e que não está imbuído de compreensão do espírito público. Antecipando-nos à propostas mais radicais que preferem anular a participação popular1, devemos colocar em relevo os valores e as práticas democráticas. Participar de uma sociedade democrática não é viver sob a égide de uma constituição e poder votar em tempos regulares; é, sobremaneira, comportar-se seguindo um duplo papel social: um privado e um público.
Em face dos propósitos deste texto, não nos ateremos ao papel privado do cidadão, porém ao público. É neste momento que se inicia o grande desafio da implementação de uma democracia real. É justamente na concepção de espaço público que cada um de nós tem, que será plantada a semente da democracia. Para nosso azar, pensando especificamente no caso brasileiro, parece que esse solo não é um dos mais férteis para o desenvolvimento democrático2. Dessa forma, não nos basta criar as mais perfeitas instituições democráticas se não damos a necessária atenção ao desenvolvimento do espírito democrático.
Este erro é repetido desde a implementação da democracia/república no Brasil. Para que entendamos melhor o que se passa atualmente com a democracia brasileira, deixemos falar alguns dos mais importantes pensadores que tivemos desde a implementação da república. O destaque fica para a atualidade dos textos escritos há mais de um século! A seguir apresentamos fragmentos de textos sobre algumas das principais características da política brasileira, eles são ilustrativos e, por si só, captam a essência destes desvios políticos que nos marcam.
Distanciamento entre elites e povo
"Por falta de capacidade construtiva do povo, politicamente inexistente, os estadistas pouco advertidos diante dos problemas eram levados por educação a procurar nos exemplos estrangeiros os moldes a aplicar, as normas a seguir sem cogitar das peculiaridades do meio, das suas condições típicas" (Gilberto Amado: À margem da História da República, 1924).
Institucionalismo
"E não os poderíamos ter [verdadeiros políticos], porque as aptidões, como as flores raras, precisam ser cultivadas. Não podem surgir de um dia para o outro, sem preparo prévio do solo, do terreno, onde devem florir e brilhar. E o nosso sistema de educação se realiza, como disse, fora da realidade e, sobretudo, fora e acima do Brasil. Por isso, leis, instituições, mundo político e social estão também fora e acima do Brasil. O nosso trabalho deve ser, mantendo a República, torná-la, antes de tudo, brasileira" (Gilberto Amado: À margem da História da República, 1924).
Legitimidade do político
"É que já não há mais ninguém que acredite no verbo inflamado dos políticos. A crença comum é que todos eles, chefes, subchefes, chefetes, cabos eleitorais de toda sorte, intendentes, deputados, senadores e até ministros e governadores, não passam de uma súcia de pândegos. Quando não se trate de gente mais complicada e perigosa. E a verdade é que quando um orador político nos fala em direito, justiça, economia, liberdade, legalidade, patriotismo, e quantos outros palavrões que com estes formam o tema ordinariamente debatido, a impressão que se tem é quase a mesma que se poderia experimentar ouvindo, por exemplo, uma prostituta fazendo a apologia da honra e do pudor?…" (Farias Brito: O Panfleto, nº1, 1916).
Legalismo
"As leis devem prescrever estes meios [de acabar com a escravidão], se é que elas reconhecem que os escravos são homens feitos à imagem de Deus. E se as leis os consideram como objetos de legislação penal, por que o não serão também de proteção civil?" (José Bonifácio: O velho e o moço, 1920).
Relação público-privado
"O privilégio, em todas as suas relações com a sociedade – tal é, em síntese, a fórmula social e política do nosso país –, privilégio de religião, privilégio de raça, privilégio de sabedoria, privilégio de posição, isto é, todas as distinções arbitrárias e odiosas que criam no seio da sociedade civil e política a monstruosa superioridade de um sobre todos ou de alguns sobre muitos" (Manifesto Republicano de 1870).
Elitismo
"Nunca ouve nos anais de nossa vida pública qualquer esforço sistemático para dar ao povo, à massa, consciência política. O privilégio de possuir consciência política, ativa e militante, foi sempre zelosamente defendido pelas ‘classes cultas’. Com a República, universalizou-se o sufrágio, abolidas que foram as restrições da Constituição imperial. Mas, foi tudo. A política continuou reservada aos doutores, aos formados, em suma, aos elementos das ‘classes cultas’. A consciência política continuou a ser olhada como privilégio e resultado dessa cultura. Em conseqüência, sempre que, no Brasil, se conclama o povo a participar diretamente e em massa da vida política, ele só o pode fazer revolucionariamente, ou através de estados coletivos de exaltação cívica, como na Campanha Civilistas e na Revolução de 1930, para citar dois casos típicos modernos; mas, de qualquer modo, por meio de irrupções intermitentes de entusiasmo ou força coletiva" (Hermes Lima: Notas à vida brasileira, 1945).
Participação
"O que caracterizava a era democrática é, precisamente, a obra de ligar entre si, livremente, os homens. Já não é o religarpor dentro (religião), ou por vagas convicções comuns (direitos natural, opiniões de doutores), é o ligar por fora, sem prender os espíritos, rumando-os por movimentos interiores, espontâneos, deles. Isso exige ‘permanente transição’, porém transição que constitui amontoamento de ciência, de técnica, de economia de esforços, de multiplicação da produtividade, de tudo que a inteligência faz dominando as forças" (Pontes de Miranda: Democracia, Liberdade, Igualdade. Os três caminhos, 1945).
Estado e sedimentação de cultura política
"Há quinze anos que se nos descreve de todos os lados a lavoura como estando em crise, necessitando de auxílios, agonizante, em bancarrota próxima. O estado é, todos os dias, denunciado por não fazer empréstimos e aumentar os impostos para habilitar os fazendeiros a comprar ainda mais escravos. Em 1875 uma lei, a de 6 de novembro, autorizou o Governo a dar a garantia nacional ao banco estrangeiro – nenhum outro poderia imitir na Europa – que emprestasse dinheiro à lavoura mais barato do que o mercado monetário interno. Para terem fábricas centrais de açúcar,e melhorarem o seu produto, os senhores do engenho precisavam de que a nação as levantasse sob a sua responsabilidade" (Joaquim Nabuco: O Abolicionismo, 1883).
Esse apanhado histórico nos permite perceber que as causas profundas da maioria dos problemas políticos brasileiros não estão exclusivamente ligados às instituições políticas, uma vez que utilizando pensadores da época imperial ao pós-Revolução de 1930, passando pela República Velha, destacamos a presença contínua e insistente de alguns de nossos maus usos da política. As instituições políticas brasileiras sofreram profundas transformações no último século, experimentando uma mudança não só funcional, mas sobretudo em sua natureza. Este avanço institucional, mais do que compensar possíveis descuidos que tivemos com a cultura política brasileira, reforça a necessidade de colocarmos em movimento as forças que agem na sociedade, que moldam seu funcionamento e suas práticas cotidianas.
Seguindo a linha já apontada pelos pensadores destacados neste texto, e contando com uma razoável maturidade institucional da democracia brasileira, devemos buscar o desenvolvimento e a sedimentação de canais de comunicação entre os diversos grupos sociais (sociedade civil organizada, principalmente através do suporte à organização e funcionamento de organizações não-governamentais; entidades de classe, raça e gênero; e agremiações mistas) e entre esses grupos e o Estado (através de instrumentos que visem a participação ativa do cidadão na gerência dos negócios públicos como, por exemplo, o orçamento participativo).
Para isso, devemos manter em mente que o Estado não deve ser o estruturador da sociedade, porém o organizador. Antes de forjar relações sociais, ele deve regulamentá-las bem como disponibilizar os limites compensatórios, que visem o equilíbrio das relações. Essa tarefa não é fácil e não alcançará os resultados esperados caso toda a responsabilidade seja concentrada num só ator; cada um deve tomar à si as responsabilidades que lhe cabe, de forma a ultrapassar a barreira da democracia formal, alcançando a democracia real.
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1 Observe-se que essa posição é encontrada também e, talvez, principalmente na própria massa, como mostrou um estudo elaborado em 2000, pela Corporação Latinobarômetro, segundo a qual dois entre cada três jovens brasileiros com idades entre 16 e 24 anos mostram-se indiferentes à democracia. Nesta mesma pesquisa, apenas 3% dos entrevistados mostrou algum interesse pela política, sendo que 77% não tinham qualquer interesse pelo assunto.
2 Para uma análise mais cuidadosa desse ponto, veja-se a obra A casa & a rua de Roberto DaMatta.
Publicado originalmente em:
Revista Autor
Ensaio – Democracia – outubro de 2001