Intervenção no Haiti e o verdadeiro papel do Brasil
01/10/2005A sociedade brasileira é marcada por uma história bastante particular: a nação brasileira não foi forjada em si mesma, porém por meio da junção de diversas percepções de país. A diversidade regional encontrada ainda nos primeiros tempos de nossa história moderna transformou famílias e grupos na materialização do Estado.
Por conta de acontecimento alhures, o Estado português viu-se subitamente transplantado para as terras brasileiras, tendo que se sobrepor e adequar à realidade destas famílias-Estado. A tarefa não foi fácil e ainda deita herança na realidade brasileira atual.
Vários governantes tentaram construir um Estado mais independente e que tivesse como função principal estruturar uma burocracia capaz de estabelecer e implementar as principais regras de convívio social. Outros governantes, mais próximos de um perfil estadista, procuraram fazer deste Estado o pivô de profundas mudanças na própria estrutura social.
Esforços válidos de todos eles, o que se pode perceber atualmente é a continuidade de uma lógica familiar nas estruturas estatais. Vejamos como.
Nas sociedades em que o formato do Estado é resultante das lutas e movimentações sociais e econômicas, destaca-se justamente a sua capacidade de organização e articulação política. Com o aumento da sofisticação dos instrumentos político-burocráticos estatais, há uma tendência para o acompanhamento das questões que mais afligem a sociedade com as questões estruturais tratadas pelo Estado.
D'altra parte, naquelas sociedades em que cabe ao Estado forjar a idéia de pertencimento comum, além de ter que oferecer sua capacidade para a estruturação dos movimentos sociais – como aconteceu com o caso Vargas – tem-se um maior afastamento entre os anseios sociais e o comportamento dos governantes.
Dentre os vários assuntos que vêm tomando a atenção da mídia brasileira nos últimos tempos, um é bastante elucidativo quanto a essa tendência de distanciamento entre o Estado e a sociedade.
Recentemente o país viu-se diante da sua participação na missão de paz para o Haiti. Numa perspectiva doméstica, o que vemos é um Congresso preocupado com o gasto de pífios US$ 50 milhões para uma intervenção desta monta. D'altra parte, vemos os ministros da Defesa e Relações Exteriores ocupados com a divulgação da importância de uma ação deste tipo para fortalecer a candidatura do Brasil a um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.
No caso dos primeiros, a confusão é tamanha que chegou-se ao limite de comparar os gastos com uma intervenção deste tipo com a necessidade de gastos com intervenção nas favelas cariocas. Sem apresentar a capacidade de diferenciar os vários interesses concomitantes e até mesmo contraditórios de um Estado, os parlamentares não conseguem ultrapassar os interesses e opiniões de suas "famílias e compadres" . O problema é que transformam estes interesses em questões tidas por nacionais, colocando-se como os grandes representantes dos interesses da nação.
D'altra parte, para os defensores da ação como fonte de fortalecimento da candidatura brasileira, há um posicionamento muito mais racional e explicável, ainda que não encontre respaldo na lógica social. Certamente não devemos reduzir a política externa (assim como qualquer outra política doméstica) aos interesses mais imediatos dos grupos sociais, contudo também não podemos acreditar que um conjunto de tomadores de decisão serão capazes de determinar os rumos corretos que o país deve seguir.
O comportamento dos brasileiros demonstram uma certa recusa à projeções de poder ou pretensões de aumento da participação brasileira no cenário internacional se isso significar também o dispêndio de recursos. O assento permanente parece estar mais ligado às ânsias de uma elite voltada a afirmar sua importância e competência, do que propriamente uma política de Estado, resultante da forma como este vem sendo forjado pela sociedade.
Cotidiano: A sociedade brasileira, para se afirmar com tal, precisa mais do que um conjunto de parlamentares e ministros que se portem como porta-vozes da realidade brasileira. Precisa de formadores de opinião e tomadores de decisão que sejam capazes de identificar nossas peculiaridades históricas e conjunturais, transformando-as em um projeto de nação.
Moral da História: Enquanto o peso do Estado somar-se ao peso da tradição, estaremos presos ao passado.
Conselho Literário: As minhas ideias, porém, flutuavam, no meio das atracções diferentes desse período, entre a monarquia e a república, sem preferência republicana, talvez sòmente por causa do fundo hereditário de que falei e da fácil carreira política que tudo me augurava (Rui Barbora – Minha Formação)
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Rivista d'autore (www.revistaautor.com.br)
Política
Cosa IV – nº 36 / Junho de 2004