Mercosul: destino ou opção momentânea?

30/09/2005 0 Di Rodrigo Cintra

A posição argentina

A Argentina, há poucos anos, era considerada modelo de desenvolvimento. Mesmo ocupando uma posição periférica no sistema mundial, apresentava índices sociais invejáveis, com um PIB per capita relativamente alto. Hoje, daquela Argentina de outrora pouco sobrou além de boas lembranças e uma capacidade de articulação social bem consolidada.

Em linhas gerais, a crise argentina foi resultante imediata da combinação da política econômica do governo Menem com a emergência de novos padrões no sistema econômico internacional. Um fator externo importante que contribuiu para desencadear tal crise foi a inversão na transferência de recursos mundiais para a América Latina ao longo dos anos noventa, o que permitiu o aumento das reservas internacionais argentinas ao mesmo tempo em que financiava um déficit crescente.

Seguindo uma “receitamuito divulgada na região, Menem iniciou uma série de reformas que deveriam levar à superação da crescente dependência externa. Entre essas reformas estava um forte programa de privatizações, incluindo-se as empresas de serviços públicos. Se por um lado os investimentos estrangeiros nestas áreas levaram a uma melhora na infra-estruturanecessário para o crescimento econômicopor outro, a necessidade de modernização tecnológica e a busca de competitividade aumentou a demanda por insumos importados. Além disso, a alta taxa de desnacionalização fez com que 90% de todo o sistema financeiro estivesse subordinado a centros de decisão externos.

Aos investimentos diretos estrangeiros seguiram-se outras contasroyalties e remessa de lucroque prejudicaram ainda mais a situação de dependência ao capital externo. Atualmente a dívida externa argentina é quatro vezes maior do que aquela encontrada no início dos anos noventa, sendo que apenas os serviços da dívida equivalem a 20% do gasto fiscal consolidado.

Um fator que particularmente contribuiu para a crise argentina foi a conversibilidade do dólar pelo pesoo currency board, implantado em 1991. Num momento de desestabilização o governo argentino decidiu pela paridadealgo que o Brasil também fezporém, diante do cenário apresentado e da baixa perspectiva de aceitação do mercado mundial, o governo argentino optou pela “legalizaçãodesta regra, cioè, para oferecer uma sensação de maior segurança aos investidores, o Congresso Nacional argentino optou por transformar em lei o dispositivo da paridade cambial. Da questa parte, o mercado não seria surpreendido por desvalorizações, já que estas deveriam ser precedidas por discussões no Congresso e alteração na lei, o que daria tempo suficiente para os investidores tomarem novas posições.

Este caminho impossibilitou uma maior flexibilidade diante das turbulências da economia mundial. A medida alcançou um certo sucesso quando a Argentina se mostrava um país emergente, conseguindo atrair uma quantidade significativa de investimentos, além de contar com um Real sobre-valorizado no Brasil, o que contribuía para um comércio bilateral superavitário.

Com a permanência desta conversibilidade após a alteração das variáveis de sustentação, o cenário tornou-se instável e nefasto. Ao mesmo tempo em que enfraquecia o país no cenário econômico mundial e promovia a desindustrialização (especialmente nas provinciais do interior), criou uma situação política insustentável no longo prazo: externamente o governo argentino era pressionado para desvalorizar o peso sob pena de tornar o país inviável no médio prazo; domesticamente, como cerca de 60% dos ativos e passivos internos eram denominados em dólar, uma desvalorização poderia levar a uma situação de crise monetária, além da possibilidade de quebra generalizada no sistema bancário.

O governo argentino nunca posicionou-se oficialmente contrário ao Mercosul, no entanto, combatiaespecialmente o super-ministro Cavalloposições brasileiras que entendiam como políticas protecionistas ou mesmo a desvalorização do Real. tuttavia, com o acirramento da crise, até mesmo estas posições foram revistas de forma a promover uma maior aproximação com o governo brasileiro. De qualquer forma, há que se notar que tal aproximação é muito mais pragmática que normativa, o que pode resultar em mudanças bruscas e inesperadas por parte do governo argentino.

A deterioração social na Argentina (1973-2001)

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1973 2001
Dívida externa (em US$) 7,6 bilhões 132 bilhões
Desemprego 3% 20%
de miseráveis 200.000 5.000.000
de pobres 1.000.000 14.000.000
Analfabetismo 2% 12%
Analfabetos funcionais 5% 32%
Fonte: SEITENFUS, Ricardo. “Metamorfoses argentinas: da prata ao caosin Estudos Avançados 16 (44), 2002
A posição brasileira

Em grande medida, o Brasil foi pego desprevenido pela profunda crise que afeta sua parceira e vizinha. Se, por um lado, os brasileiros já se acostumaram a ver “panelaçosnas ruas e novos presidentes empossados, por outro há uma grande incerteza quanto ao futuro da Argentina e do Mercosul.

As respostas dos investidores internacionais à crise argentina satisfaz de maneira muito superficial e transitória os interesses brasileiros. Não basta apenas que entendam que a capital do Brasil não é Buenos Aires; não basta entenderem que são dois países com estruturas macroeconômicas diferentes.

O chanceler Celso Lafer afirmou, não faz muito tempo, que “o Mercosul é destino e a ALCA uma opção”. Como explicar agora essa vontade do Brasil se ver livre de seu “destino”? Fácil fazê-lo dentro de casa, diante de uma população ainda pouco habituada a questões internacionais e de uma elite apegada a um cosmopolitismo primeiro-mundista.

Grande parte da retórica diplomática brasileira se dava em torno do projeto Mercosulbasta lembrar que o País reservou um embaixador para cuidar exclusivamente da integração com seus vizinhos sul-americanos. Buscava-se o incremento dos elementos de poder, sempre diretamente ligados aos valores universais.

Os argentinos, contudo, decidiram seguir outros caminhos para resolver sua crise estruturalrefiro-me particularmente ao regime de conversibilidade. Certamente não foi a alternativa que melhor interessava ao Brasil. Agora, infelizmente, os atores internacionais que efetivamente conseguiriam alterar o staus quoEUA e FMIadotam posturas muito duras com relação à Argentina. Em alguma medida, isto até poderia ser esperado, particularmente após a emergência do governo republicano de George W. Bush. Mas que o Brasil agora decida virar as costas à sua parceira de outrora é, no mínimo, um erro de retórica, senão um erro de concepção geoeconômica.

Deve-se ressaltar que as falhas estruturais e a projeção política da Argentina não são muito diferentes da de muitos países sul-americanos. Ao afastar-se da Argentina o Brasil pode estar, de certa forma, afastando-se de seus próprios problemas.

Enquanto o Mercosul for entendido como um apanhado de mercados e o Brasil não for capaz de formular uma política externa consistente para a região, o País continuará a navegar segundo a maré e desviando sua pequena caravela cabralina dos super-petroleiros da economia mundial.


Pubblicato originariamente inInterCivitas, ano I, nº 1, julho-agosto de 2002