Reformas: ganho do Estado, perda da sociedade
01/10/2005Governar um país é uma tarefa muito mais complicada e ingrata do que pode nos parecer quando vemos os jogos da política encenados na mídia. Ainda que os governantes insistam em dizer que têm controle sobre os destinos da nação e que basta controlar adequadamente as instituições políticas para construirmos um país mais justo, o que se vê é uma contínua batalha escondida entre as várias forças que constroem o país.
Desde a Era Collor a sociedade brasileira foi tomada por uma profunda sensação de que o Estado está em desacordo com nossa realidade. A necessidade de diminuição do tamanho do Estado – versão deturpada de um liberalismo tupiniquim – viu-se reinterpretada ao longo dos governos que se sucederam foi responsável por grande parte de nossos sonhos e desilusões políticas.
Fernando Henrique passou dois mandatos buscando as tão sonhadas reformas que nos permitiriam concluir o processo de modernização, removendo as barreiras impostas pelo gigantismo estatal ao desenvolvimento econômico brasileiro. A despeito de sua profunda legitimidade reformadora – advinda do Plano Real – e de sua ampla base parlamentar, as reformas tiveram que ser adiadas.
Aproveitando-se da tradicional euforia do começo de mandato e do apoio popular disto advindo, o presidente Lula buscou avançar naquilo que seu antecessor não havia conseguido. Logo colocada de escanteio a reforma política, elegeu-se como ponto fundamental de governo as reformas Tributária e da Previdência. Numa estratégia política aparentemente caótica, o governo conseguiu avançar em alguns importantes pontos, colocando em pauta delicadas questões como a dos privilégios de alguns setores e a não sustentabilidade do atual modelo político-administrativo brasileiro. A despeito disto e em face da necessidade de afirmar quem está no controle do Estado, o governo preferiu acessar toda a sua força e criar um rolo compressor que pudesse aprovar as reformas requeridas, mesmo que ao custo de deturpar toda a proposta inicial.
A distância dos corredores de Brasília permite-nos uma análise muito mais distante e estática, o que significa exigente e coerente, do rumo que as reformas estão tomando. Quando analisamos os textos que estão caminhando no Congresso Nacional podemos encontrar uma série de medidas que ou são totalmente inapropriadas ou que apenas adiarão a execução das reformas efetivamente necessárias para a reestruturação brasileira.
As reformas cosméticas embelezarão o combalido Brasil por mais alguns anos e, com sorte, por mais dois ou três mandatos. Provavelmente este será o tempo necessário para esquecermos de que não fizemos o que deveríamos ter feito; é exatamente isso o que acontece hoje: achamos que as reformas brasileiras devem ocorrer para adequar o país aos desafios da globalização e da modernização advinda da competitividade econômica. Esquecemo-nos que os custos que hoje temos que suportar foi por conta do modelo adotado durante o regime militar, que por sua vez paga a conta do pós-getulismo e assim por diante.
Para reformarmos seriamente o Estado brasileiro deveremos antes entender qual sociedade construímos ao longo do último século. Certamente as reformas mais urgentes são aquelas que lidam com a manutenção da capacidade financeira do Estado, contudo elas não podem ser separadas das macro-tendências que solidificam alguns dos alicerces sociais. A sociedade deve ser capaz de chamar para si a responsabilidade de decidir sobre seu próprio futuro, enquanto teimarmos em entender essas reformas como alterações estruturais que permitirão à economia andar sem a pressão constante do peso estatal e não como a readequação de todo o aparato construído para auxiliar na formação de nosso modelo ideal de nação, estaremos fadados a deixar para nossos filhos um mundo tão injusto quanto aquele em que vivemos.
Moral da história: o mundo é um só, não dá para "corrigir" uma das partes sem envolvermos o todo.
Cotidiano: Enquanto o governo comemora avanços nas reformas e a oposição se preocupa em mostrar as contradições dos discursos eleitoral e de governo o povo tem que continuar em sua batalha diária por um prato de comida. Ao menos antes podia-se sonhar com um país melhor, agora sobrou apenas a "correção para não piorar".
Conselho Literário:
"Se perguntar quais são os fins da vida é fazer uma pergunta real, devemos ser capazes de respondê-la corretamente. Reivindicar racionalidade em questões de conduta era reivindicar a possibilidade de encontrar em princípio soluções corretas e definitivas para essas questões"
A originalidade de Maquiavel – Isaiah Berlin
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Política
Ano III nº 27 – Setembro de 2003