A crise e o nascimento de um novo modelo

01/03/2009 0 Por Rodrigo Cintra
A atual crise financeira internacional talvez não seja apenas financeira, seja do modelo econômico-produtivo como um todo. Olhando-se numa perspectiva de longo-prazo, é possível perceber o esgotamento de um modelo, aquele baseado no comércio enquanto troca, para o surgimento de um modelo baseado no comércio enquanto agregador de valor.
Em julho de 1944, durante as Conferências de Bretton Woods, os países industrializados da época lançaram as bases para a construção de um sistema internacional econômico e financeiro. Neste momento, pela primeira vez na história, os países conseguiam determinar de forma coordenada regras, instituições e procedimentos para tratar da economia mundial. Inicialmente conseguiram sucesso na criação do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD). A terceira perna estruturante dos acordos, a Organização Internacional do Comércio (OIC), não teve sucesso.

O fracasso da OIC não desanimou os negociadores, que sabiam não ser suficiente apenas garantir os investimentos de base do BIRD ou a liquidez fornecida pelo FMI, era preciso avançar na abertura comercial como forma de estimular o crescimento econômico e, por consequência, criar um mundo mais estruturado economicamente. Assim, logo foi criado o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT, na sigla em inglês), que é formado por uma série de rodadas de liberalização comercial. Em 1995 o GATT foi substituído pela Organização Mundial do Comércio (OMC), que também contou com várias rodadas de liberalização comercial, permitindo um contínuo, ainda que não regular, aumento na liberalização do comércio mundial.

Em termos históricos, é importante notar que desde 1944 muito se fez em termos de regulamentação do comércio, porém pouco em termos financeiros ou de investimentos. O Investimento Estrangeiro Direto (IED), tão festejado durante a década de 1990 e até a pouco tempo, começa agora a mostrar um lado não tão interessante. Os Estados, sobretudo os menos industrializados, gastaram muito tempo e esforço político numa frenética tentativa de atração de IED, acreditando que a entrada destes recursos na economia nacional seria a grande salvação. Esse foi o retrato do Brasil em Fernando Henrique Cardoso e no primeiro mandato de Lula. Agora se começa a perceber que não serve qualquer IED, que os países devem ter um projeto de desenvolvimento e deve-se buscar apenas o IED de portfólio, ou seja, aquele que aporta nos projetos ligados às reais necessidades do país.

A questão é que agora os bilhões de dólares que entraram nos países como IED começam a buscar seus caminhos de retorno e em grande parte das vezes, sua saída levará um esforço que pouco ajudou os países nos últimos anos. Novamente, os países estarão perdidos e com poucos recursos, justamente porque não quiseram se preocupar com um planejamento maior, não quiseram repensar o BIRD enquanto orientador da tentativa coletiva de (re)construir uma economia mundial mais sólida. O foco estava todo no comércio.

De fato não é possível negar que a abertura comercial mundial aumentou significativamente os fluxos internacionais, aumentou o estoque mundial de riquezas e trouxe uma melhoria material efetiva para uma parte significativa da humanidade. A questão que fica é se temos seguido o melhor caminho. A atual crise econômico-financeira tem indicado que chegamos a um ponto de virada dentro do caminho que percorremos e talvez a mudança tenha que ocorrer numa velocidade tão alta, que provavelmente os impactos negativos anularão vários dos avanços alcançados.

Neste cenário de crise os governos não estão negando o princípio do comércio em si, algo que seria muito difícil hoje, depois de décadas afirmando que este era o melhor caminho. Porém, estão ajustando o comércio segundo padrões diferentes. Até a crise prevalecia a idéia de que o comércio deve se sustentar em cima dos melhores preços, vedada apenas a possibilidade de dumping, que seria uma forma artificial de deturpar a compatitividade e, assim, causar distorções em alguns setores produtivos. Hoje o que se vê é um movimento no sentido de restringir o comércio em função de questões que vão muito além dos preços cobrados. As barreiras tarifárias estão perdendo espaço para as chamadas barreiras não-tarifárias, que são aquelas de natureza técnica, sanitária e fito-sanitária.

É por este caminho que antigas questões finalmente econtraram seu espaço para dentro do mundo do comércio, como as ambientais e as trabalhistas. A escolha por um produto verde ou sustentável socialmente logo deixará de ser uma questão pessoal, de ética individual, e passará a ser um problema de governos. Hoje começa-se a perceber mais fortemente que um produto não carrega em si apenas uma utilidade e um valor, carrega igualmente um passivo ambiental e social e que começará a ser cada vez mais determinante sobre sua possibilidade de circulação. Não estou defendendo que os governos foram atingidos por uma vontade de buscar um posicionamento ético-comercial, mas sim que a própria crise atual coloca essa saída como uma das poucas viáveis para um re-arranjo do sistema comercial internacional.

Por vias indiretas e, em grande medida, não propositadas, estamos vivenciando o lento nascimento de um novo modelo de trocas comerciais. Ele não está ainda visível, mas por baixo das ações dos vários governos ao tentar encaminhar soluções para a crise, pode-se vê-lo surgir.

Publicado originalmente em Revista Autor

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