O Brasil também tem multinacionais

23/05/2008 0 Por Rodrigo Cintra
É uma cesta de motivos que não encontra paralelo na história do Brasil. Nunca, como agora, se falou tanto de protecionismo no comércio mundial, do novo ambiente de negócios decorrente da globalização, da robustez exibida por parcela ponderável das empresas brasileiras, da taxa de câmbio com o dom de tornar os ativos mais baratos no exterior e da saturação de mercados. Pode não parecer, mas esse sortimento de razões tem tudo a ver, e muito, com a impressionante escalada internacional empreendida pelas firmas nacionais, que estão comprando empresas e abrindo filiais em pontos cada vez mais remotos, trilhando os passos que principiaram a ser dados, décadas atrás, pela Petrobras, reverenciada hoje como a sexta maior empresa de petróleo do mundo, segundo classificação da consultora PFC Energy.

Da mesma forma, conforme acentua João Paulo Cândia Veiga, professor de ciência política da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Centro de Estudos das Negociações Internacionais (Caeni), o crescimento sustentado do mercado interno, a economia mundial aquecida, que favorece os superávits no balanço de comércio com a exportação de commodities, e as taxas de juros que ajudam a trazer recursos para o mercado de capitais estimulam as empresas a se internacionalizar mediante a capitalização por IPOs (sigla em inglês para ofertas públicas iniciais de ações). “E há a perspectiva da elevação do rating para o Brasil, através do grau de investimento, que acaba coroando esse processo sinérgico”, aventa ele.

Conformado até recentemente em ser apenas um porto seguro para as empresas de nações mais adiantadas, o país está vendo suas multinacionais singrarem com volúpia mares do norte e do sul. Um número crescente delas passou a adotar estratégias ativas de inserção internacional por meio não apenas da exportação, mas da instalação de coligadas no exterior, explica o professor Antonio Corrêa de Lacerda, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Autor dos livros Globalização e Investimento Estrangeiro no Brasil e Desnacionalização: Mitos, Riscos e Desafios, ele observa que o lado vantajoso da internacionalização econômica reside num maior acesso ao mercado mundial de capitais e numa maior exposição em regiões diversas do planeta, superando barreiras tarifárias e não-tarifárias.

Em 2006, a título de investimento direto, o Brasil despejou no exterior US$ 28 bilhões, de acordo com a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), órgão da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), montante que superou em US$ 9 bilhões o ingresso de capital no país no mesmo período e com a mesma finalidade. É verdade que esse elevado valor foi influenciado pelo desembolso de US$ 17 bilhões bancado pela Vale (ex-Vale do Rio Doce) para assumir o controle da mineradora canadense Inco, a segunda maior produtora de níquel do mundo e com atividades no Canadá, Indonésia e Nova Caledônia (território francês de ultramar localizado na Oceania) – e, até aquela oportunidade, a maior aquisição já realizada por uma companhia de país emergente em uma nação desenvolvida. O Brasil passou, então, a ocupar uma posição de destaque no grupo dos grandes investidores mundiais, uma investida que começou a ganhar fôlego em 2004, a partir da fusão entre a brasileira Ambev e a belga Interbrew, acordo que deu origem à Inbev, um dos mais representativos conglomerados industriais do ramo de bebidas. “A linha mestra de nossa política comercial sempre foi baseada na exportação”, diz Michel Alaby, consultor de comércio exterior. “Demoramos muito para entender que a internacionalização das empresas deveria considerar a instalação de subsidiárias mediante a construção de plantas novas ou a compra de empresas já estabelecidas.” Alaby afirma que não há um planejamento governamental para isso, contrariando, por exemplo, o que ocorreu na China, que ofereceu incentivos fiscais e financeiros e assinou acordos de promoção e proteção recíproca de investimentos com mais de cem países.

Vale e Gerdau

A decisão de instalar-se no exterior, que avança como um rastilho de pólvora e ganha um número cada vez maior de adeptos, está chegando ao conhecimento do mercado por meio de manchetes que testemunham a nova realidade. Exemplos não faltam: “Agrale vai produzir caminhões na Argentina”; “Votorantim compra a Prairie, nos EUA”; “Tramontina amplia presença em Dubai”.

“Ainda que cada caso responda a um conjunto próprio de fatores para explicar a internacionalização da empresa brasileira, alguns deles parecem ganhar relevância”, observa Rodrigo Cintra, diretor da Focus R.I. – Assessoria & Consultoria em Relações Internacionais e professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Ele cita a maturidade do sistema econômico-produtivo brasileiro, que permite maior competitividade dos produtos made in Brazil no mercado externo, e a necessidade de ampliação da base consumidora, que tem a virtude de reduzir os custos relativos do próprio processo de internacionalização.

Isso deve explicar, em parte, a expansão mundial da Vale, presente em mais de 30 países nos cinco continentes, incluindo operações e escritórios comerciais e de pesquisa mineral, e da gaúcha Gerdau, 14ª maior produtora de aço do planeta e líder no segmento de aços longos nas Américas. Dona de um vasto conglomerado de unidades industriais e comerciais, além de joint ventures e empresas coligadas, a Gerdau opera filiais na Argentina, Canadá, Chile, Colômbia, Espanha, Estados Unidos, Índia, México, Peru, República Dominicana e Venezuela. Com capacidade instalada anual de 24,8 milhões de toneladas, faturou R$ 34,2 bilhões no último exercício. Nos EUA, onde cresceu comprando concorrentes, apenas com a Chaparral Steel – segunda maior produtora de aço da América do Norte e uma de suas mais recentes aquisições – desembolsou US$ 4,22 bilhões. E o que dizer da também sulina Marcopolo, fabricante de carrocerias de ônibus que lançou âncoras no exterior anos atrás e hoje vê seu letreiro brilhar em lugares cada vez mais distantes? “As operações na Colômbia, México, África do Sul, Portugal e, no ano passado, Rússia, Argentina e Índia abriram espaço para um crescimento ímpar de nossas atividades”, diz Ruben Antonio Bisi, diretor de Operações Internacionais da empresa. “A produção pulou de pouco mais de 12 mil unidades, em 2003, para quase 18 mil no ano passado, e deve superar 20 mil este ano.” Bisi comenta que a demanda crescente por ônibus em mercados emergentes como a Índia e países africanos, além da Rússia, dará sustentação a esse aumento.

Ambiente favorável

O fato é que a lista de empresas que estão partindo para a internacionalização não cessa de ganhar novos participantes, tornando o Brasil um investidor de respeito no cenário mundial. “A fragilidade experimentada por algumas economias na Europa e mesmo pelos Estados Unidos, bem como a forte desvalorização do dólar, proporciona um ambiente favorável às empresas brasileiras”, salienta Alex Agostini, economista-chefe da Austin Rating, agência classificadora de risco de crédito. Ele destaca que “o reconhecimento da marca brasileira mundo afora é uma tendência que deve se acentuar daqui para a frente, seja pelo aumento da demanda por commodities, seja pela força financeira adquirida pelas empresas nacionais de uns anos para cá”. Mas, como afiança Germano Mendes de Paula, professor do Instituto de Economia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), “a empresa que optar por reunir, antes, as condições necessárias para investir no estrangeiro nunca o fará, pois os concorrentes estão melhorando todo o tempo”. Mendes de Paula comenta que, entre 1930 e 1980, as empresas cresceram no mercado doméstico por meio da diversificação, já que era mais fácil entrar em novos mercados no Brasil do que se aventurar por meio da instalação de subsidiárias no exterior. “Nas décadas subseqüentes, a preocupação maior foi a sobrevivência, tanto que apenas agora as companhias brasileiras começam a se engajar mais intensamente no jogo da internacionalização produtiva”, diz.

De fato, nunca como nos dias atuais a instalação de filiais no exterior ganhou tanto realce. “Será mais competitiva a empresa que estiver presente em maior número de países”, afirma Henry Quaresma, diretor de Relações Industriais da Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina (Fiesc). Ele adverte que, se as empresas brasileiras não investirem no campo da competitividade ou deixarem de buscar mercados em outras praças, acabarão sufocadas pela concorrência interna. “Não é mais possível pensar somente no mercado local. Hoje, o comércio das empresas é o mundo”, afirma.

Foi pensando assim que indústrias como a catarinense WEG ampliaram seus horizontes, investindo em filiais em pontos estratégicos do globo a despeito dos desafios que esse tipo de iniciativa representa. Fabricante de motores elétricos e entre as primeiras do setor em escala mundial, a empresa é dona de uma penca de linhas de produção no Brasil e de fábricas na Argentina, China, México e Portugal. “A WEG sempre sentiu a necessidade de investir em pesquisas no mercado externo e, posteriormente, na abertura de filiais”, esclarece Celso Vili Siebert, diretor regional da companhia para a América do Sul, Australásia e África.

A revoada rumo ao exterior é impressionante. O professor Mendes de Paula lembra que há uma forte evidência de que, em vários casos, a internacionalização decorre da necessidade de estar ao lado dos principais clientes, tática usualmente chamada de follow my customer. É o que também pensa Álvaro Cyrino, professor e pesquisador do Núcleo de Internacionalização da Fundação Dom Cabral (FDC), centro de desenvolvimento de executivos, empresários e empresas. Segundo ele, os mercados estão cada vez mais interligados e é preciso estar mais perto dos clientes para poder melhor responder às suas demandas. “Os lances estratégicos das empresas não podem mais ser vistos da perspectiva apenas de um único país”, completa. Mendes de Paula concorda, afirmando que essa estratégia é particularmente notória entre as companhias da cadeia automotiva.

O exemplo da Sabó

O caso da paulistana Sabó é emblemático. Destacada produtora de autopeças especializada na produção de retentores e juntas, selos mecânicos e sistemas de condução, ela se projetou mundialmente pautada por uma política expansionista que tem em alta conta a proximidade física com o cliente. “A chegada da globalização, na década de 1990, encontrou a Sabó com os pés firmemente apoiados no exterior graças a seus programas de exportação, que vêm desde a década de 1970, quando começamos a fornecer para a Opel, na Alemanha”, conta Luiz Carlos Vinícius Freitas, diretor de marketing da empresa.

Freitas relata que essas aquisições começaram pela Argentina, em 1992. “No ano seguinte, assumimos o comando da Kako, na Alemanha (várias unidades de produção que atendem, hoje, a quase 30 linhas de montagem). Em 1997, abrimos uma filial na Hungria, acompanhando a Audi, que estava se instalando no país mediante a construção de uma fábrica de motores. Depois vieram os Estados Unidos, com vistas a dar atendimento às necessidades da Axle, tradicional indústria de eixos, que vinha tendo sérios problemas de garantia e qualidade com o antigo fornecedor.” O diretor de marketing conta que a Sabó opera ainda escritórios na China, Inglaterra, Itália, França e Japão, e deve inaugurar uma fábrica na China, em 2008. “E estamos avaliando o estabelecimento de uma linha de produção na Índia”, confidencia.

Cada vez mais a expansão rumo ao mercado externo é protagonizada por empresas prestadoras de serviços. Veja-se o exemplo do Ibope, encastelado entre os maiores institutos de pesquisa e com filiais na Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, Estados Unidos, Guatemala, México, Panamá, Paraguai, Peru, Portugal, Uruguai e Venezuela. E da CPM Braxis, posicionada entre as grandes do setor de tecnologia da informação (TI) no continente e que não esconde querer alargar sua participação no mercado global crescendo, principalmente, em solo americano. “Nossa expansão nos Estados Unidos permite melhor atendimento aos clientes sediados no país, além de posicionar o Brasil entre os grandes exportadores de soluções de TI”, afirma Alvi Abuaf, presidente da CPM Braxis International. Com 5 mil funcionários, 200 clientes e 14 centros de desenvolvimento de aplicativos, a empresa atua também na Europa e em boa parte da América Latina. Há ainda o caso da Tito Global Trade Services, provedora de serviços em logística internacional e comércio exterior com bases externas na Argentina, México e Estados Unidos. “O fato de darmos atendimento a importadores e exportadores no Brasil levou-nos naturalmente a oferecer o mesmo conjunto de serviços nas pontas, aos fornecedores e compradores”, ressalta Hermeto Bermúdez, CEO da companhia. Segundo o executivo é primordial que os novos conhecimentos obtidos nas bases locais sejam “globalizados”. A concorrência no exterior, especialmente em mercados mais sofisticados, melhora a competitividade da empresa como um todo, na medida em que o aprendizado é transferido para a matriz e as demais subsidiárias, salienta o professor Álvaro Cyrino, da FDC.

Olhar para dentro

Decididamente, abrir filiais no exterior não é coisa para iniciantes. “O mercado externo não é feito para empresas ineficientes”, explica Olavo Henrique Furtado, consultor do Núcleo de Negócios Internacionais da Trevisan Consultoria e professor da Trevisan Escola de Negócios. Ele diz que antes de procurar qualquer tipo de operação no exterior – seja através da exportação ou da abertura de filial – a companhia deve olhar para dentro, desvendar suas vantagens e os ajustes que terão obrigatoriamente de ser feitos. O consultor argumenta que a internacionalização dos investimentos é a regra no mercado mundial, não se tratando mais, portanto, de uma decisão deste ou daquele país ou região. “Enfrentamos todo tipo de dificuldade”, relata Flávio Balestrin, diretor de Expansão Internacional da Totvs, empresa dedicada ao desenvolvimento de softwares de gestão empresarial e também empenhada em ganhar terreno lá fora. Ele informa que a primeira unidade da Totvs no exterior nasceu na Argentina, há mais de dez anos, investida pioneira que contemplou, posteriormente, a abertura de coligadas no Chile, México, Uruguai, Paraguai, Porto Rico e Portugal.

Algumas dessas incursões internacionais contaram com a ajuda do BNDES, que disponibiliza uma linha de financiamento específica para tais operações. No caso da aquisição pela JBS-Friboi da unidade da Swift Armour, na Argentina, relata o banco oficial, foi concedido um empréstimo de R$ 140 milhões. A mesma linha de crédito já foi utilizada pela Cooperativa Agroindustrial Lar para o estabelecimento de duas plantas armazenadoras nos distritos paraguaios de Mariscal Francisco Solano López e Yguazú, no valor de R$ 6 milhões, e pela CPM Braxis, para a montagem de uma estrutura comercial e de vendas no exterior mediante investimentos da ordem de R$ 3,68 milhões. Lívia Ferrari, da área de Comunicação do BNDES, ainda cita o financiamento feito à Itautec, no valor de R$ 142,6 milhões, e que teve como destino a pesquisa, o desenvolvimento e a inovação de produtos e processos, o aumento da capacidade produtiva e a expansão da atividade internacional da empresa por meio da aquisição de uma distribuidora de produtos de informática nos Estados Unidos. “O país que quer competir no mercado externo tem de ter empresas de porte para enfrentar a concorrência”, afirma Carlos Gastaldoni, superintendente da Área Industrial do BNDES. “E para atingir essa dimensão, é preciso que os grupos brasileiros tornem-se, efetivamente, internacionais”, finaliza.

Revista Problemas Brasileiros – nº 387 – mai/jun 2008
Fonte: http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas_sesc/pb/artigo.cfm?Edicao_Id=309&breadcrumb=1&Artigo_ID=4825&IDCategoria=5524&reftype=1