Recesso parlamentar não foi redução, foi perda

27/02/2006 0 Por Rodrigo Cintra
O recesso parlamentar foi finalmente reduzido, passando de 90 para 55 dias por ano. A idéia foi aprovada recentemente pelo senado e vem no momento em que os políticos estão cada vez mais desacreditados, como uma resposta desses à sociedade. Do outro lado, a imprensa conseguiu ecoar os sons que estavam dispersos na sociedade e que têm nos políticos um monte de corruptos e pessoas desligadas dos reais interesses da sociedade. Agora resta saber quem ganhou e quem perdeu com essa medida.

Agora que o tema já não mais ocupa os noticiários e que é possível perceber que nada realmente mudou, o foco será direcionado para outra questão paliativa qualquer, para outra ilusão simplória que tem em um ou dois pontos de fácil tratamento a solução para as mazelas políticas do país.

O que realmente fica desse debate é o fracasso de não se ter feito o que se deveria. Novamente a sociedade brasileira perdeu uma importante oportunidade para tentar superar sua própria condição, reafirmando nossa tendência – que já se apresenta mais como constância – de se focar mais na forma que no conteúdo. Essa oportunidade, como muitas outras que já passaram, apenas reforça a idéia de que a política não passa de um conjunto de procedimentos a serem seguidos, que os políticos deveriam representar os interesses gerais da nação, mas sem que a nação precise se esforçar para isso.

De forma individualizada, a defesa mais comum é de que a política é algo tão sujo, que não merece a atenção dos cidadãos. Os políticos são seres tão corruptos, que não merecem a confiança dos cidadãos. E, assim, a democracia brasileira não consegue passar de uma farsa que sustenta a ilusão de que a população detém o poder, enquanto uma minoria desonesta controla tudo segundo seus interesses.

Ainda que caricaturizada, essa é a realidade que conseguimos ver pelas ruas. Um sistema viciado, uma elite descompromissada e uma população desarticulada. A questão é como mudar essa realidade? As soluções são complicadas e os esforços são em vão, o que garante a cada um de nós, cidadãos honestos e cumpridores de nossos deveres, a tranqualidade de não termos que fazer nada a respeito já que cada um de nós não será capaz de mudar tudo isso. Desta forma, agora podemos nos concentrar em nos arranjar dentro desse sistema injusto.

No entanto a solução está muito mais próxima de nós do que parece. Um bom começo seria pensar a relação que mantemos com nossos políticos. Ao acreditarmos que eles não estão lá (na distante e abstrata sede do poder) e que fazem o que bem entendem, independente de nossos interesses, é um sinal de abandono do jogo político, antes mesmo que ele comece. E aqui não é defendida a idéia de que devemos acompanhar a vida pública de nossos políticos, algo inviável num quotidiano cada vez mais corrido.

O repensar da relação político-cidadão é muito mais básico do que isso e não deve ser confundido com a relação candidato-eleitor, que é passageira. O desinteresse pela política é resultado da nossa distância mantida em relação a ela, do nosso desconhecimento em relação ao que se faz na tomada de decisões política, no próprio jogo político.

A forma como foi tratada a questão do recesso parlamentar vem ao encontro dessa leitura simplista que é feita da realidade, uma realidade não-compreendida. Assim, a sociedade brasileira comemorou uma medida que, antes do que ser uma medida ética ou mesmo corretiva, apenas aprofunda os vícios para os quais ela foi tomada. A redução do recesso, ao invés de aumentar o trabalho dos políticos, vai diminuir.

A vida de um político, ao contrário do que prefere acreditar a maioria da população, não é fácil. O político não é um administrador, tese que tem ganhado força, é um político. O Estado não é uma empresa, é um lugar para onde convergem interesses divergentes e que têm impactos em toda a sociedade.

O papel de um político não se resume a ir a um gabinete ou plenário, assinar papéis e votar em projetos de lei. Para quem já andou pelos corredores de Brasília sabe que o plenário não é o lugar central da atividade política. As comissões consomem a maior parte da vida parlamentar e são a base da atividade plenária. Plenária vazia ou cheia não é sinal de mais ou menos trabalho, é apenas um sinal político. Comissões vazias ou cheias sim é um sinal de mais ou menos trabalho.

No entanto a questão não deve parar por aqui. Um político não resume seu trabalho a comissões e plenários, ele precisa manter um contato constante com sua base eleitoral. Brasília vive de terça à quinta não porque os políticos querem voltar para suas casas nos finais de semana para ficar na piscina tomando sol, ao contrário, os políticos têm que voltar para suas bases eleitorais. Reuniões locais, participação em eventos e comemorações, recebimento de pedidos e demandas e manutenção de relacionamentos de natureza política preenchem esse período da semana de um político.

Da mesma forma que os finais de semana de um político não são tranqüilos e distantes do trabalho, suas férias (ou melhor, recesso) também não podem deixar de assim o ser. Quando acusamos um político de ter 90 dias de recesso enquanto nós, pessoas comuns, temos apenas 30, nos esquecemos que temos 30 dias reais, nos quais podemos nos desligar totalmente de nossas obrigações profissionais, enquanto um político não conseguirá se afastar mais do que alguns dias de sua base.

Isso nos leva para a verdadeira discussão que foi desperdiçada quando o tema do recesso parlamentar esteve na agenda. O político não é algo separado de nós, é fruto de uma relação, a cidadão-político. Assim, a redução não é redução, é perda. Nós, cidadãos, agora teremos uma chance ainda menor de manter um contato mais estreito com nossos políticos. Se antes eles dispunham de 90 dias para ficar junto às suas bases eleitorais, agora dispõem apenas de 55.

Numa situação na qual não nos envolvemos com a política, obrigar os políticos a ficarem em Brasília por mais 1 mês e meio ajuda a tranqüilizar nossa raiva por aqueles que deveriam estar “trabalhando” como nós e não o fazem. Mas num cenário no qual queremos mudar a relação entre o político e o cidadão, nossa exigência deveria ser exatamente a oposta, ou seja, uma presença menor do político em Brasília e maior perto das bases.

Assim, a população brasileira comemora a redução do recesso parlamentar, como que a glorificar sua própria armadilha, como que a reafirmar seu total desinteresse pela política como uma atividade importante para mudança. E, com isso, reforçamos a idéia de que a política é apenas o administrar de projetos de lei.

Moral da história
Quando a política não passa de uma atividade administrativa, a qualidade de um político é dada pela quantidade de dias em que “bate o ponto”.

Quotidiano
Todos os países da América do Sul, da Europa e os Estados Unidos têm recessos parlamentares de, no mínimo, 90 dias. Nesse grupo estão de democracias jovens a consolidadas, e para nenhuma delas esse recesso “excessivo” parece algo incômodo. Talvez a culpa seja, para variar um pouco, culpa de nossos políticos.

Conselho Literário

Se pois os Estados Unidos, depois de arruinados por uma cruel guerra, usando aquele expediente, já tanto avultam no teatro político, a que altura deve esperar que o Brasil se eleve em riqueza, população, indústria e potência, adotando-se com firmeza igual política, estando na situação a mais favorável para a correspondência mercantil em todas as partes do globo.
Observações sobre o comércio franco no Brasil (Segunda Parte) – Visconde de Cairu


Publicado originalmente em:
Revista Autor (http://www.revistaautor.com.br)
Ano VI – nº 57 – Março de 2006
Seção Política