O sim de Bush e o não de Doha: convergência de pragmatismo e retórica

29/09/2005 0 Por Rodrigo Cintra

Nas relações internacionais as palavras têm a mesma importância que os atos, sobretudo quando ambas são originadas em potências. Dessa forma não basta apenas falar, ou agir, é preciso fazer os dois. Por mais que na maior parte das vezes as palavras pareçam negar as ações, uma leitura mais cuidadosa nos mostra que na verdade uma constrói a outra.

O discurso do presidente Bush sobre a abertura comercial americana – na Assembléia Geral das Nações Unidas em 14/09 – apesar de ter provocado um efeito positivo na comunidade internacional, aparentemente não passa de um exercício de retórica.
Às vésperas do fim da Rodada Doha – em dezembro, com a reunião Ministerial da OMC em Hong Kong – falar em diminuição de subsídios e retirada de barreiras comerciais é tentar tirar a culpa da derrota sobre si mesmo, nos cinco minutos finais.
Desde o início da Rodada Doha, União Européia e Estados Unidos foram os dois representantes com as maiores ressalvas relativas às barreiras comercias e principalmente diminuição de subsídios. O aumento de benefícios concedidos aos setores do algodão, milho e soja nos EUA, no início de 2005, de 344%, 327% e 246%[1] respectivamente, deixam claro que os EUA não estão dispostos a comprometer a competitividade e lucratividade de sua agricultura.
Sabe-se que o setor agrícola americano mantém sua alta produtividade mediante os incentivos governamentais para produção e exportação e por meio das barreiras comerciais para importações. Qualquer abertura mínima do mercado americano para outras localidades – como o caso do açúcar caribenho no CAFTA-DR – já causam polêmica e mobilizam os senadores no Congresso bem como os grupos de interesse.
Também, o discurso do presidente Bush tem como ponto de apoio a União Européia, pois a abertura americana está diretamente condicionada à Europa. Desta maneira, Bush afasta ainda mais as possibilidades de que a Rodada Doha seja concretizada de fato, visto que o volume de incentivos agrícolas na União Européia é maior e a sua retirada (ou mesmo diminuição) envolve políticas regionais com impactos nacionais.
Desta maneira os EUA tiram de seus ombros a culpa por uma Rodada Doha ineficiente, pois há um compromisso (verbal) do país[2] com as a implementação da agenda comercial exigida, mas somente caso os demais prévios opositores façam o mesmo.
Ainda que a reforma da Política Agrícola Comum (PAC) já esteja programada – com a redução dos subsídios a partir de 2007 – ela ainda é bastante controversa, com muitos países contrários a sua vigência (como França e Portugal), e não abarca as exigências do grupo de países em desenvolvimento (G-20).  Além disso, no sítio da própria instituição, também está vinculada a diminuição dos subsídios europeus aos demais países: “(…) preparando a UE para o ciclo de Doha de liberalização do comércio internacional, foi já apresentada uma proposta da UE para a eliminação das subvenções à exportação na sua globalidade; o êxito desta proposta dependerá de uma atitude idêntica por parte dos outros países (…)”[3].
Neste sentido, não há como considerar o discurso do presidente Bush como possível ou mesmo plausível, visto a iminência do fechamento da Rodada e o condicionamento americano à abertura européia ele se transforma em retórica vazia, que resgata os sempre valores comuns de diminuição da pobreza e livre-comércio.
Considerando também a importância da agricultura para a formação da União Européia, é improvável que no, curto ou médio prazo, o cenário comercial do bloco mude substancialmente. Desta forma, os EUA não firmam compromisso algum, a não ser com seu setor agrícola doméstico, que tem a garantia da manutenção de subsídios, sejam os contra-cíclicos (permitidos por lei) ou aqueles para exportação ou adequação ecológica da produção; e no final esses subsídios serão revertidos em votos, dinheiro para campanha e apoio político nas próximas eleições, tanto para os republicanos, quanto para os democratas.
O referido discurso do presidente Bush não é apenas uma peça de retórica ou um falso testemunho, é a resultante da atual fase de negociações comerciais internacionais que hoje vivemos. A complexidade dos pontos não permite o estabelecimento de barganhas cruzadas simples, como ocorreram em algumas rodadas do GATT ou mesmo da OMC.
Estamos num momento no qual o comprometimento com a continuidade das negociações é fundamental inclusive para se evitar um possível retrocesso no que já foi negociado. Por outro lado, a quantidade e intensidade dos interesses envolvidos passa a exigir uma dinâmica negociadora ainda não existente, envolvendo o comprometimento mútuo de atores que operam em níveis sub-nacionais.
Entender a importância das palavras, nesse momento, é uma importante forma de compreensão da realidade internacional.

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Diretor da Focus R.I. – Assessoria & Consultoria em Relações Internacionais e Vice-Presidente da Câmara de Comércio Argentino-Brasileira de São Paulo (ulhoacintra@gmail.com).
** Consultora da Focus R. I. – Assessoria & Consultoria em Relações Internacionais (www.focusri.com.br)
[1]Com base em dados do Ícone: Subsídios nos EUA vão crescer US$ 14 bi in ___.iconebrasil.org.br acesso em 21 set 2005.
[2]Os Estados Unidos “estão dispostos a eliminar todas as tarifas, subsídios e outras barreiras ao livre-trânsito de produtos e serviços se outras nações fizerem o mesmo”. Discurso do Presidente Bush na Assembléia Geral da ONU em 14 set 2005 fonte: ___.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2005/09/050914_bushonu.shtml acesso em 21 set 2005
[3]___.europa.eu.int/pol/agr/overview_pt.htm acesso em 21 set 2005.

Publicado orignamente em:
RelNet – Colunas de RelNet no. 12 , mês 7-12 ,ano 2005
http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2005/27090543citraricci-doha.html