Lula bêbado ou americano ignorante?

29/09/2005 0 Por Rodrigo Cintra
As culturas apresentam histórias diferentes, de forma que cada indivíduo imerso em uma cultura. apresenta uma percepção própria da realidade. Foi imersa nesta problemática que surgiu e se desenvolveu a antropologia, uma ciência ocupada do estudo das diversas culturas. Ainda que na origem desta ciência, os seus cientistas estivessem convictos de sua “superioridade”, com o tempo perceberam que as diferenças culturais não indicam evolução ou qualquer idéia de superioridade.

Do continente europeu, origem da antropologia, essa perspectiva na forma de se apreciar outros povos ganhou espaço e legitimidade. Entre os principais antropólogos que surgiram nesta fase, destaca-se a americana Ruth Benedict, com seu estudo O Crisântemo e a Espada, e que procurava entender a sociedade japonesa da II Guerra Mundial. O objetivo do estudo era municiar o governo americano com informações acerca da sociedade japonesa, de forma a tomarem decisões sobre a forma de conduzir o desfecho da guerra.

A antropologia vem passando por importantes mudanças desde então, porém continua tão válida quanto era. Importantes conceitos como a ‘alteridade’ foram cunhados e hoje a percepção de outras sociedades é cada vez mais sofisticada.
Evidentemente, não é possível acreditar que o desenvolvimento da antropologia está ao alcance de todas as pessoas. No entanto, por mais que a ciência seja assunto para cientistas, suas conclusões e idéias são, em alguma medida, compartilhadas com a sociedade. Desta forma,

devemos esperar que a sociedade americana seja capaz de aplicar minimamente os conhecimentos mais básicos da antropologia: econhecimento da diversidade cultural e não-hierarquização das culturas. Se essa idéia não deve ser aplicada rigorosamente com relação à sociedade  como um todo, ao menos deve ser observada pelos meios de comunicação.
Os principais meios de comunicação americanos são sustentados por jornalistas e outros especialistas que certamente apresentam uma boa qualificação profissional, de forma que em algum momento de sua formação tomaram contato com a antropologia. Desta forma, é de se esperar destes que, quando comentando questões internacionais, sejam capazes de compreender a realidade que comentam a partir de perspectivas próprias e daquelas do seu objeto de estudo. Entretanto, não foram estas as características apresentadas pelo importante diário americano The New York Times. Em um recente artigo assinado por Larry Rohter, intitulado Brazilian Leader’s tippling becomes national concern (Inclinação do líder brasileiro torna-se

preocupação nacional), encontramos estranhas – para dizer o mínimo – afirmações sobre o presidente Lula.
Independentemente de nossas filiações político partidárias e do apreço que podemos nutrir por nosso presidente, fato é que os comentários são totalmente descabidos de sentido. Para começar o artigo insinua que o presidente Lula está com problemas alcóolicos e que isto tem

afetado seu governo. Some-se a isto, o artigo busca legitimidade para tais afirmações em ninguém menos do que Leonel Brizola – um político desgastado em si mesmo e que já há algum tempo faz afirmações um tanto quanto “exóticas”.
Não bastando estes comentários, o artigo segue comentando os churrascos que ocorrem no Alvorada com uma certa freqüência. Momento em que insinua que a bebida, numa tradução idiomática para o português, “rola solta” (“liquor flows freely”). Para alguém que não

mora e nem conhece o Brasil, não será muito difícil reforçar a idéia de que somos um país no qual as pessoas passam o dia todo sambando e bebendo.
Essa imagem é prejudicial por si mesma, porém responde a algo ainda mais grave e que perpassa toda a matéria. Como que solta na argumentação, está a idéia de que o Brasil está mergulhado num caos profundo, com governantes festeiros. Logo no segundo parágrafo,

como que para contextualizar os comentários que serão feitos, apresenta-se a idéia de que o governo está sendo assolado por uma crise após a outra, de escândalo de corrupção ao fracasso de programas sociais cruciais (“government has been assailed by one crisis afteranother, ranging from a corruption scandal to the failure of crucial social program”).
Portanto, além do caráter altamente político por trás do artigo, podemos notar a total incompetência do jornalista para perceber o perfil cultural brasileiro. Se faltou nas aulas de antropologia ou preferiu ignorar suas lições, não sabemos, mas sabemos que cerveja, caipirinha e churrasco são comuns na vida de muitos brasileiros. O presidente, qualquer que seja ele, deve manter a respeitabilidade que o cargo exige, porém isso não significa que ele não deva também fazer coisas que

aprendemos em nossa cultura. Até onde sei, bebidas alcóolicas não são proibidas para maiores de idade, e churrascos não enfrentam restrições.
Se nem mesmo os brasileiros questionam o fato de o presidente Lula beber, por que um jornalista de um jornal importante como o The New York Times o deve fazer? A cultura americana está muito mais preocupada com o que fazem suas figuras proeminentes do que nós

brasileiros (à exceção do caso dos artistas). Projetar o  moralismo americano na conduta de uma figurabrasileira, além de totalmente inadequado, é bastante complicado na medida em que esta figura é o mais importante representante do Estado brasileiro.
Se a preocupação central do autor era pensar em como o comportamento de uma pessoa influi no destino de várias outras, seria mais interessante repensar o artigo que é apresentado logo a seguir do artigo sobre Lula. No artigo “Bush propõe um plano para ajudar os oponentes de Castro em Cuba” (

brasileira, além de totalmente inadequado, é bastante complicado na medida em que esta figura é o mais importante representante do Estado brasileiro.Se a preocupação central do autor era pensar em como o comportamento de uma pessoa influi no destino de várias outras, seria mais interessante repensar o artigo que é apresentado logo a seguir do artigo sobre Lula. No artigo “Bush propõe um plano para ajudar os oponentes de Castro em Cuba” (Bush proposes a plan to aid opponents of Castro in Cuba), de Christopher Marquis, é apontado o anúncio que fez o presidente Bush para “aumentar drasticamente o dinheiro para cubanos críticos do governo do presidente

Fidel Castro”.
Independentemente de nossa percepção acerca da legitimidade do governo de Fidel em Cuba, deveria ao menos causar um certo espanto a forma de atuação do governo Bush. Ao invés de repensar um bloqueio que vem limitando a qualidade de vida dos cubanos, o presidente anuncia orgulhosamente que gastará recursos para desestabilizar o governo cubano. Isso representará   desvio de outros programas de ajuda internacional na ordem de US$ 59 milhões. Assim, se a preocupação é analisar o comportamento presidencial, deveriam fazer esta análise para todos, inclusive para eles mesmos. No entanto, que reservem para o presidente Bush todo o moralismo americano, deixando ao presidente Lula toda a cordialidade brasileira. Talvez tenha chegado a hora de traduzirmos alguns livros seminais brasileiros para

assim, quem sabe, ensinarmos um pouco mais para pessoas que se acham competentes para realizar análises.


O Debatedouro (ISSN 1678-6637)

47a edição – 16 de maio de 2004 – Ano III