Família e espaço público no Brasil

29/09/2005 0 Por Rodrigo Cintra

 A Modernidade desarticulou o tradicional papel macro-social que a Igreja desempenhava (organizando a estrutura social elementar através do domínio dos principais rituais e dos discursos éticos balizadores dos "comportamentos normais"). Isso ocorreu pois seu aprofundamento exige um novo padrão de relacionamento social que tem uma grande proximidade com o que hoje chamamos de utilitarismo. Uma vez resumida a Igreja ao domínio litúrgico, a Modernidade pôde concentrar suas forças na outra instituição-base da macro-estrutura social – a família. A família, como tipo-ideal, é o refúgio ao qual o indivíduo retira-se quando está saturado do público. Nela o indivíduo transforma-se em pessoa e ganha um status hierarquizado e desigual. Assim sendo, a oposição entre a sociedade e a família (o público e o privado), ainda dentro do tipo ideal, seria diferença e desigualdade, respectivamente. Faz-se importante notar que concepção moderna de espaço público surgiu historicamente depois da família. Ainda que hoje constituam sistemas sociais separados, as interferências são múltiplas e nos dois sentidos.
Naquilo que é hoje considerado o supra sumo do espaço público, as relações nominalmente iguais e os princípios mecânicos da democracia devem prevalecer. Com isso, espera-se que todas as desigualdades sejam anuladas e que todas as diferenças encontrem canais de exposição, troca e compatibilização com o todo. Dentro disto, e dos atuais tamanho e complexidade do espaço público, os relacionamentos seguem um padrão ritualístico e formal.
A família, por outro lado, encontra canais diretos de comunicação interna que, cada vez mais, dispensam os rituais de relacionamento (exceção àqueles nos quais a família  abre-se ao mundo exterior, como aniversários, batizados, casamentos e velórios). A ausência de mecanismos formais de resolução de conflitos e compatibilização de divergências leva a situações diversas daquelas encontradas no espaço público. Diante de uma hierarquia persistente que, no caso brasileiro, tende a ser mais forte nos extremos do estrato social (nos mais ricos em face do conservadorismo e nos mais pobres em face do reacionarismo saudosista), na família, o consenso está baseado em padrões muito específicos. Ao invés de um consenso baseado na convivência e preservação das diferenças, como é o caso daquele encontrado no espaço público, aqui busca o consenso unitário, ou seja, as diversas posições devem ser resumidas a uma só, uma vez que ela falará e identificará a família como um todo, que será automaticamente estendida a todos os seus membros. Aquelas famílias que expõem abertamente (o que significa dentro de seu quadro relacional e para o mundo externo) diferenças profundas sobre os assuntos da vida privada, facilmente serão rotuladas de desajustadas e, provavelmente, enfrentarão uma crise relacional constante entre seus membros. Além da identificação de seus membros, o consenso unitário é importante para sedimentar à hierarquia familiar (uma das mais rígidas que conheço), o que permitirá ao chefe da família a imposição, em grande medida unilateral, de seus princípios.
Diante das tendências quase opostas entre a família e o espaço público, como é possível a convivência de ambos? um sobrepor-se-á ao outro?
Mais do que uma oposição conflitante, entre elas encontramos uma continuidade auto-reforçadora. Para chegarmos a esta conclusão, devemos primeiro ultrapassar a barreira institucional, procurando evitar a simples comparação entre instituições e voltar-nos para o suo real que dela é feito. Isto levar-nos-á para aquilo que é o principal elemento de compreensão de uma sociedade: a relação entre cultura e instituições sociais.
Dos parágrafos acima, depreende-se as diferenças entre as instituições família e espaço público. No entanto, passada essa primeira aproximação, importa-nos exatamente o indivíduo/pessoa. Já foi apontado, ainda que um pouco descompromissadamente que o indivíduo atual no espaço público e a pessoa na família. Isso não deve conduzir-nos à falsa impressão de separação entre eles, da facto, trata-se do mesmo ser humano. Com isso, quanto maior for a aptidão ou a tendência de alguém a um determinado tipo de comportamento, mais forte e importante será a instituição que segue estes mesmos parâmetros. A outra instituição, por sua vez, será enfraquecida ou, quando isso não for possível, viciada.
No caso brasileiro, nossa história estimulou o hiper-desenvolvimento da família, colocando o uso do espaço público, qual requer o tipo-ideal, como uma perda de tempo e algo ameaçador para a estabilidade sócio-relacional. Atualmente, ao passarmos por uma fase de modernização mais radical (no sentido stricto desta palavra), fica exposto com maior clareza o uso culturalmente dado das duas instituições em análise. Talvez a decodificação mais famosa que temos disto é aquela que indica nossa capacidade de separação entre o público e o privado ou ainda a privatização do Estado.

Com isso, podemos concluir que não existe uma ordem necessária de determinação entre as duas instituições em análise. O que podemos perceber são usos formatados por uma cultura que formou-s num determinado contexto histórico e que findou por privilegiar algumas práticas. Portanto, para modificarmos o suo que é feito das instituições não devemos concentrar toda nossa artilharia em sua reforma; antes, devemos ficar concentrados naqueles elementos e mecanismos que promovem a preservação e/ou a transformação da estrutura cultural. Não duvido ser este um trabalho hercúleo, contudo isto não nos exime de fazê-lo.

Originalmente publicado em:

Revista Espaço Acadêmico (ISSN 1519.6186)

Ano II – N. 18 – Novembro de 2002