De Severino Cavalcanti a Roberto Jefferson: muito além da política

29/09/2005 0 Por Rodrigo Cintra

A política brasileira tem passado por um lento desgaste em suas estruturas e os impactos disso podem ser maiores do que os jornais brasileiros são capazes de anunciar. Até o momento, o maior foco dado pela mídia e seguido pela opinião pública está na capacidade ou não de o governo Lula manter a governabilidade. Os acontecimentos que vem marcando a lógica política nos últimos meses são interpretados como ausência de capacidade política do atual governo ou mesmo como despreparo administrativo do PT para assumir o governo federal. Tal forma de ver o atual cenário político tem sido fortalecido tanto pela mídia quando pelos partidos de oposição, especial destaque fica para o PSDB.

Deve-se destacar aqui que essa forma de ver a realidade é dada a partir do ponto de vista das elites, ou seja, é a mídia e os políticos mostrando sua preocupação com a governabilidade e o gerenciamento do aparato estatal. Incompetência, descontrole sobre a máquina estatal e ausência de governabilidade são termos que aparecem recorrentemente na mídia e que expressam o tom das análises.

Por outro lado, quando se olha a política brasileira como uma seqüência de fatos e, sobretudo, uma seqüência observada e comentada pela população como um todo, os resultados que podemos esperar mudam bastante. Neste sentido, o que era entendido até então como uma crise de governo que poderia se transformar em crise de Estado, passa agora a ser vista como uma crise da política que pode até se transformar numa crise de democracia.

Se nos corredores de Brasília fala-se em cabeças que rolarão e mesmo "cortes na própria carne" por parte de partidos e grupos, nas ruas brasileiras as idéias são bem outras. A descrença na classe política tornou-se algo constante e não se trata de ter um caso de corrupção aqui ou outro lá, de trocas e conchavos destinados a aprovar esta ou aquela lei. Ao contrário, a população brasileira vem solidificando uma certa aversão à política, agora compreendida não mais como a arte da coisa pública, mas como a arte do escuso.

O maior problema desse cenário é a possibilidade que ele abre para o surgimento de "soluções mágicas" para o país, como foi o caso do Golpe de 1964 ou mesmo da eleição de um Collor "caçador de marajás". Destaca-se aqui que ambos os casos tiveram apoio das elites políticas do país, que mudaram na forma para não mudar no conteúdo, ainda que a conta dessas mudanças tenham sido totalmente paga pela população.

Ao recuperarmos alguns fatos recentes podemos chegar até as eleições do deputado Severino Cavalcanti (PP/PE) para a presidência da Câmara dos Deputados. Tema que ocupava grande espaço e foi suprimido da imprensa brasileira, na época foi entendido como um fracasso do governo Lula em manter a fidelidade de sua bancada governista. O fato foi explorado de forma a mostrar um Severino caricatural, defensor de idéias e projetos duvidosos e de ética pública duvidável. Suas falas viravam manchetes descontextualizadas e que pareciam encerrar em si todos os males dos políticos brasileiros.

Aos poucos as frases do deputado Severino Cavalcanti perderam seu apelo e cairam no lugar comum e isso sem que se fizesse uma análise mais séria sobre o que ocorria. Assim, aquele deputado caricatural e tido como uma excentricidade da Câmara dos Deputados chega à presidência da Câmara como que por acaso, sem que ninguém soubesse bem o porquê. No entanto esqueceu-se de dizer que esse mesmo deputado não estava tão longe da presidência e do corpo administrativo da Câmara como se pensava, tendo ocupado o cargo de Segundo-Vice-Presidente (1997-2000), Primeiro-Secretário (2001-2003) e Segundo-Secretário (2003-2005).

Substituindo uma manchete por outra, agora temos o deputado Roberto Jefferson (PTB/RJ) ocupando o espaço onde antes estava Severino. Usando uma tática um pouco diferente para se manter exposto na mídia, Roberto Jefferson faz denúncias contínuas, sempre indicando que tem algo mais a dizer, bastando a mídia manter-se aberta a ele. Não se sabe a certo o quanto mais ele tem para dizer nem mesmo se conseguirá ou quererá provar o que tem dito, porém o que fica é uma capacidade imensa em agitar as personagens que povoam Brasília.

Suas denúncias, mesmo que não comprovadas, conseguiram derrubar o "homem forte do governo", o ex-Ministro Chefe da Casa Civil José Dirceu. E a agitação não deve para por aqui. Outros nomes estão surgindo, forçando a atividade parlamentar a ceder espaço para a atividade política em sua excelência. Não se fala mais em pauta trancada no Congresso ou mesmo em força tarefa para aprovar uma Medida Provisória. Ao contrário, a questão girava unicamente em torno da CPI dos Correios e agora sobre a possibilidade de uma nova CPI, esta destinada a investigar outras denúncias trazidas por Roberto Jefferson.

Isso tudo não seria de todo negativo não fosse transformado em espaço privilegiado para exposição dos políticos – figuras públicas – junto à mídia. Todos querem fazer seu aparecimento nos jornais, seus comentários críticos sobre a corrupção e a necessidade de punir os culpados. E é justamente essa correria desatada por parte dos políticos para ocupar a mídia com suas denúncias que apresenta ameaça para a política brasileira.

Quando uma vez mais saímos dos corredores de Brasília e voltamos para as ruas brasileiras, não mais é possível ver uma luta de grupos políticos por poder, ao contrário, vê-se apenas um conjunto de políticos ocupados com retóricas falsas. A impressão que se pode colher é que o objetivo de tudo isso não é passar para a população a idéia de honestidade, mais que isso, o objetivo é apenas resguardar o parlamentar para que não caia na Comissão de Ética e tenha seu mandado ameaçado.

Neste sentido, a população brasileira como um todo só tem reforçada a percepção que vem se consolidando de que a política é um reino no qual existem apenas incompetentes e corruptos. Ao contrário do que ocorre com os parlamentares, que devem se ocupar do cotidiano da política, a população ocupa-se de grandes movimentos, e a consolidação dessa percepção será de difícil reversão.

Cumpre neste momento uma reflexão maior, sobretudo por parte da mídia e das elites comprometidas com a democracia, no sentido de recuperar a importância da política e dos mecanismos democráticos para a construção do país. De outra forma não só acabaremos com a já fragilizada governabilidade atual, como também com a própria capacidade de encontrarmos na democracia os canais mais adequados para a superação de nossos desafios.

 


Publicado originalmente em:
Revista Autor – Ano V – nº 49 / Julho de 2005
Seção de Política