De Lisboa a Buenos Aires ? Uma Estratégia para o Consenso

29/09/2005 0 Por Rodrigo Cintra

O desenvolvimento económico com justiça social, no âmbito de um processo de integração regional como o Mercosul, exige a internalização de normas facilitadoras de integração, um profundo debate sobre o papel do Estado enquanto entidade reguladora, uma acção integrada entre o governo, empresas, instituições de pesquisa e universidades, procurando ligações intra e inter-regionais.

O Mercado Comum do Sul surge como uma tentativa de institucionalização da cooperação entre o Brasil e a Argentina que, através do comércio, consolidaria uma relação de confiança que, por seu turno, pretende ser a base de um processo sustentável de integração, abrangendo também os demais países do cone sul latino-americano. Desde o lançamento formal do Mercosul há uma tendência para ampliar a agenda de integração, o que aumenta a complexidade da estrutura política e económica. Paralelamente, aumentou a sensibilidade de parcelas da sociedade civil dos Estados membros para temas de índole regional, o que levou ao aumento dos estímulos para a sua organização e activismo. Este fenómeno trouxe novos desafios, além de estimular a emergência de uma percepção local do papel que a região tem a desempenhar no sistema internacional.
O aumento do envolvimento sócio-político no processo de integração do Mercosul resulta da interligação entre três dimensões: doméstica, regional e global. No primeiro caso, podemos destacar o exemplo brasileiro, que foi paradigmático na medida em que ocorre em maior profundidade. Na década de noventa, percebe-se um amadurecimento do sector produtivo brasileiro, pela exposição à competitividade internacional (aprofundamento da abertura comercial, iniciada no governo Collor de Mello e consolidada no governo Fernando Henrique Cardoso), pela onda de privatizações, pela criação de agências reguladoras de sectores estratégicos (como a energia eléctrica, o petróleo, a água e as telecomunicações).
Ao nível político ocorre a consolidação democrática, sendo Fernando Henrique Cardoso o primeiro presidente eleito a finalizar o seu mandato na era pós-redemocratização. Paralelamente dá-se um amadurecimento da sociedade civil e das suas estruturas participativas, com o fortalecimento de movimentos sociais – como, por exemplo, o Movimento dos Sem Terra (MST) – e de organizações não governamentais, bem como a consolidação do aparato jurídico que regula o chamado terceiro sector.
Já na dimensão regional mercosulina, percebe-se nas relações entre os Estados membros a predominância de um perfil de negociação mais concentrado nos altos escalões governamentais, a chamada diplomacia de cúpula. Tal forma de conduzir as questões relativas aos interesses convergentes dos Estados membros faz com que prevaleçam dinâmicas ligadas mais às pressões conjunturais sofridas pelos executivos de cada país, ao mesmo tempo em que são influenciadas pelo protocolo das relações diplomáticas.
Em grande medida, mais do que buscar o estabelecimento de uma boa relação entre os presidentes dos países, é necessário procurar a criação de um conjunto de instituições e marcos de referência, visando uma mais efectiva internalização de normas facilitadoras da integração comercial, fazendo emergir a necessidade de haver também um esforço de aproximação das políticas internas. No entanto, uma abordagem baseada somente na harmonização não faz sentido, em função das assimetrias entre os países da região.
Uma das possíveis soluções para este problema assenta na adopção de um novo método de governança pelo Mercosul. Inspirando-se na experiência europeia, tem-se como exemplo o Método Aberto de Coordenação, que se traduz na adopção de algumas prioridades comuns gerais que depois são traduzidas e adaptadas para cada realidade nacional. Emerge assim a centralidade de se promover a acção integrada entre o governo, empresas, instituições de pesquisa e universidades, procurando ligações intra-regionais que criem factores competitivos, agregando valor através de maiores índices de inovação em processos, serviços e produtos.
Tal forma de coordenação entre os países do cone sul, por sua vez, é influenciada pelo esgotamento dos modelos neo-liberais de política económica vigentes na década de noventa. A deterioração dos índices sociais mostrou as limitações destes modelos, ao mesmo tempo que funcionou como estímulo para a emergência da capacidade participativa da sociedade civil, retomando a necessidade de observar a agenda de desenvolvimento económico a partir de uma perspectiva mais ampla.
Nesse sentido, em face do novo perfil do sistema internacional, o Estado recupera a sua centralidade enquanto entidade reguladora e promotora do desenvolvimento económico e social, responsabilidade que agora deve ser compartilhada com o sector produtivo. Só assim será possível responder ao desafio de promover desenvolvimento económico com justiça social, num contexto pautado pelo aumento de concorrência a que está exposto o sistema económico de cada Estado e da região como um todo. Dentro das principais formas de alcançar maior competitividade podemos destacar a questão da inovação dos processos e produtos desenvolvidos.

O consenso de Buenos Aires
Em meados de Outubro, os presidentes da Argentina e do Brasil, em declaração conjunta, apresentaram um documento denominado Consenso de Buenos Aires, que visa ser um passo complementar de uma política pró-activa para o fortalecimento da integração regional da América do Sul, e do Mercosul em particular. Os valores defendidos neste documento simbolizam a vontade política existente para gerar uma estratégia de desenvolvimento económico com justiça social, assente no aumento consciente da interdependência entre os países da região.
Entre outros objectivos, o Consenso visa:
– aumentar a capacidade de negociação dos países signatários nos fora internacionais;
– fortalecer a democracia na região e garantir o direito à plena cidadania, nomeadamente através da integração regional e, mais especificamente, do fortalecimento do Mercosul.
Entre as reformas e medidas que se propõe no consenso para atingir estes objectivos, encontram-se:
– a profissionalização da administração pública;
– maior transparência na tomada de decisões;
– desenvolvimento de infra-estrutura;
– uma aposta na ciência e no desenvolvimento tecnológico com base em pesquisas em pólos universitários e outros institutos de investigação; e
– fomento da educação e da saúde.
A simpatia mútua entre Kirchner e Lula deu a entender que o Mercosul entraria numa nova fase, marcada pelo esforço mais intenso rumo à consolidação destas exigências num mesmo conjunto. Contudo, a prioridade dada ao Mercosul parece responder mais às questões de conjuntura doméstico-eleitorais do que propriamente resultante de uma clareza no projecto de política externa de cada membro. Suas eleições representaram mudanças em ambos os países, sobretudo a emergência de um discurso mais combativo no cenário internacional no que tange às práticas dos países desenvolvidos, ao mesmo tempo – e dentro da mesma lógica retórica – procuravam a aproximação com outros países subdesenvolvidos.
O consenso de Buenos Aires surge como uma oportunidade de superar a dinâmica doméstico-eleitoral que até então determinava o padrão de relacionamento entre os países da América do Sul, e do Mercosul em particular. Emerge então o desafio de encontrar novas alternativas e estruturas flexíveis e abertas à efectiva modernização da região.

De Lisboa a Buenos Aires
Desafio semelhante se apresenta à na União Europeia, e que vem sendo enfrentado, desde a presidência portuguesa do primeiro semestre de 2000, com a chamada Estratégia de Lisboa. Esta pretende ser uma estratégia de acção para aumentar a competitividade, não só através do aumento da exposição das economias nacionais à competição internacional, como também através de uma cooperação de potencialidades ao nível doméstico e regional. A Estratégia de Lisboa é traduzida em planos de acção em várias frentes, através da identificação de sectores chave e objectivos específicos.
Assim, a Estratégia procura ajudar a abrir para a Europa um caminho de transição para a economia baseada na inovação e conhecimento que vai moldando a arquitectura financeira, social e política global. São, para isso, necessárias reformas estruturais nos mercados nacionais e regionais. Nos poderes nacionais, estas reformas devem ser feitas em termos de burocracia, fiscalidade, justiça, no mercado laboral, bem como mobilidade dos factores de produção. O Estado pode incentivar a inovação através de programas de incentivo específicos, de investigação, incentivos fiscais, entre outros.
Assim sendo, indirectamente, o Estado tem um grande papel como promotor do poder regulatório enquanto motor da inovação, que é um factor de competitividade acrescida. O Estado deve também praticar formas modernas e abertas no domínio dos mercados públicos e compras públicas, nas privatizações, entre outros. O centro de gravidade da inovação são as empresas, este tem que ser feito num ambiente de cumplicidade e transparência com os poderes do Estado e com os poderes regionais. Só assim se geram processos continuados e sustentados de inovação que permitam de facto traduzir-se em ganhos substantivos de competitividade.
Um projecto de integração tem implícita a procura de influência sobre as relações de força internacionais, como é o caso do Mercosul. O objectivo dos actuais governo é transformar o Mercosul num espaço económico de articulação de políticas activas (políticas industriais, agrícolas, tecnológicas, estabelecendo complementaridades entre sectores), ir além da união aduaneira. Uma das mais importantes questões que continuam a prevalecer na agenda integradora, e que deverão ser superados a fim de que se alcance essa nova fase, é a da instabilidade/imprevisibilidade encontrada nas questões políticas e económicas dos Estados membros. A dependência dos países do Mercosul em relação ao capital externo (seja por conta de formação de reservas internacionais, seja por conta da sustentabilidade de superávit) faz com que a percepção que cada Estado membro tem do Mercosul assuma diferentes perfis, em função da situação: por vezes, quando existe uma certa convergência nos interesses dos Estados membros, o Mercosul surge como um sustentado plano de integração que visa a harmonia e a defesa mútua dos interesses do bloco; quando existem profundas divergências entre os membros, a tendência é a de ignorar o instrumental criado pelo Mercosul, concentrando-se em acções de cunho individualista. O Consenso de Buenos Aires simboliza o reconhecimento da necessidade de estabelecimento de estratégias de acção para o aprofundamento do Mercosul. Hoje, o Mercosul tem que definir a dimensão que quer ter, a sua dimensão económica e política, sinónimo de uma identidade mercosulina em construção. Identidade de carácter sólido e responsável pelos compromissos assumidos. É necessário evitar os riscos de diluição em discussões de índole populista, radicalmente ideologizadas e substancialmente vazias, por um lado, ou deixar-se ultrapassar por prioridades perigosamente imediatistas. É imprescindível dar uma estratégia ao Consenso.


Originalmente publicado em:

Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais – Portugal